17.12.06

Sobre esperas e luzes de Natal

Tenho que me concentrar muito pra imaginar meus dias sem você. Como procurar ampolas com curas nas caixas velhas, nos diários escritos nos quartos vazios repletos de sua ausência. Vem em pesadelos que exageram nessa proteção em preservar o que não pode mais ser protegido. Em pesadelos de não ter você aqui comigo no segundo em que vou deixar tudo para trás. É o brilho dos seus olhos que quero reconhecer no primeiro suspiro dessa nova vida e antes que isso vire uma tragédia, acho que vou continuar me perdendo em pesadelos nos fins das tarde e acordar suado e com marcas de almofadas nas bochechas.
Bem que eu poderia esconder tudo na caixinha, vestir uma camiseta colorida e fazer uma prece de criança. Rir da Dona Sebastiana e da Dona Zefa chamando a irmão irritada de Mariquinha. Uma chateação que tá virando vicio. Um vicia de fazer o tempo passar pra fazer a espera menos dolorida. São ferimentos que não consigo curar, que não há médico para tratar e que penso que apenas no seu doce colo, de palavras que agora compreendo bem, que poderei em fim viver de sorrisos.
Então abro a janela e posso ouvir a briga das vizinhas e me perder nas luzes de Natal. E vou deixando o meu rastro, brincando de João e Maria, pra poder voltar para o coração que me acomoda. Como rir que nem bobo sentado no banco que em outras noites me viu chorar e lamentar pra Lua. Foi como dizer, ainda que esteja esperando, que eu sabia exatamente que viveria tudo aquilo. Voltar ali pra poder provar o improvável. Pra provar o que está estampado no rosto dos meus verdadeiros amigos: eu sou o maluco mais louco e apaixonado desse mundo! Sou aquele que se entregou às suas loucuras que não se cansou, mesmo longe das luzes amarelas, de procurar seus sonhos.
O trem parou para mim e eu quase nem acredito que vão me deixar subir. Estive cansado de esperar aqui fora, agora posso muito bem esperar lá dentro. Não escondo a euforia e não ando economizando nada pra aproveitar cada momento dessa viagem. Logo estarei no trem que sempre passou reto e que me deixou para trás todos esses anos. E quando a hora de partir chegar, quando as luzes de Natal se apagarem, vai ser não mão do amor que vou me segurar. Quando não temos asas, quando temos feridas que não se pode curar, só temos que acreditar na segurança forte de uma mão que nunca vimos, mas que estranhamente sempre soubemos que existia.
Estou esperando e logo estarei partindo.

6.12.06

Depois da esquina... Depois da chuva.

A chuva anunciara que seria assim. Caminham, os dois, dois homens no tempo que não é tempo. Esperam por dias que não são dias, horas que não podem ser contadas, num lugar que não se diz lugar. Apenas caminham na chuva e esperam. Se esperam?

HOMEM 1
Vou morrer?

HOMEM 2
Você não vai morrer.

HOMEM 1
Como sabe?

HOMEM 2
Apenas sei. Não faça mais perguntas, basta a chuva.

HOMEM 1
Eu tenho a sensação que ela está próxima.

HOMEM 2
É apenas uma sensação, nada mais que isso. Você está com medo, aceite e pronto.

HOMEM 1
Como aceitar o mal que trouxeste para mim?

Homem 2 o encara.

HOMEM 2
Disse que nunca me culparia.

HOMEM 1
Como diria se sempre o culpei?

HOMEM 2
A carta...

HOMEM 1
Que carta?

HOMEM 2
A carta em que me perdeu. Escreveu que não me culparia.

HOMEM 1
Não posso...

Homem 2 tira a carta de do bolso e a lê.

HOMEM 2
Não sei se essa carta vai chegar ao destino. Há muito que não tenho noticias suas. Já era raro te ler e agora com esse silêncio todo de palavras e de seus dias, temo por você. De certo modo temo por mim também. Sofro com antecedência permitida de um mal que podes me provocar. Espero não culpá-lo e se isso fizer, guarde essa carta. Onde procurá-lo? Tudo ficou mais escuro que antes. Se o vejo não o reconheço. Se não o reconheço é porque mudou muito ou talvez tenha me esquecido de você. E isso é uma mentira. És vivo em meu olhar e nas histórias que conto. É você que vive, ainda que ausente, nas minhas idas e vindas e tudo tem você sem lhe ter. Estranho assim mesmo. Não sei explicar como posso te viver sem o ter. E o mais estranho é que se foi sem que tenha partido. Não sei chegar em você, tocar, dizer o que deve ser dito. Quando penso que desisti me pego escrevendo sem medidas e mentiras. Escrevo no desespero de um momento sem fim. No desejo de encontrá-lo e arrancar de ti essa coisa que não é tua, esse pesar que não é seu. Hoje sei dos corredores onde se perde, sei dos caminhos tortos, das luzes amarelas, estranhos que te abusam nesses mofos estofados azedos do seu novo lar. Queria poder fazer mais por você e assim faria mais por mim. Falo isso porque iremos nos encontrar um dia e sei que a morte nos rondará, sobretudo quando chover forte e estivermos sós. Quando a chuva chorar a nossa desgraça, dos dias amargos, você levará tudo de mim. E eu não vou te impedir. Nada direi quando arrancar do meu peito a inocência que ainda cedo perdeu. Vou recordar nas suas palavras dessa carta, desse dia, desse mais um dia em que me faltou sem que se quer tenha partido. Agora sei que o perdi e que não posso mais procurá-lo. No momento em que aceitei te perder foi que te perdi. E isso foi nesse instante. Então, se essa carta chegar em vossas mãos, mesmo que as luzes sejam poucas e a esperança ainda te cobre mais suspiros, não sofra por mim, seria inútil, sofreria por antecedência. Também não sofra por você, as palavras belas partirão desse cru lugar. Não se agrida e preserve a essência, só assim nos reconheceremos em tudo aquilo que nos une e nos separa.

HOMEM 1
Lembro dessa carta. Você a guardou.

HOMEM 2
E você desistiu de mim.

HOMEM 1
Desisti de nós.

HOMEM 2
Por que não foi me buscar?

HOMEM 1
Você não deixou.

HOMEM 2
Sempre te esperei! Dia após dia eu esperei você chegar!

HOMEM 1
Você mandou que eu aceitasse os seus sujos e imundos desejos. Que esperasse um dia, nessa chuva, que você me procurasse.

HOMEM 2
Me lembraria desse detalhe ao contrário de você.

HOMEM 1
Isso! Exatamente isso, ao contrário de você! Quer que eu leia a carta que escreveu no escuro?

HOMEM 2
Certamente ela não o inocenta.

Homem 1 tira a carta do bolso e a lê.

HOMEM 1
Ainda que tarde, sempre recebo as suas tristes cartas. Digo tristes pois nada de alegre há mais em você. Sei que há mais consciência em você agora que está na luz que não cega. Sei que de onde estou não o vejo, apenas o idealizo. E sei que seria diferente. Imaginei tantas histórias e nunca pude crer que o veria triste e desacreditado. Então fico na espera sem fim. Porque tenho feito isso, te esperar dia após dia, sem te esquecer nunca. Mas você não vem mais, diz que me perdeu quando na verdade perdeu as cores coloridas de dias alegres e sem fim. Perdeu a vontade de fazer melhor do que somos hoje. Apesar da dor de um certo abandono ser forte e agora constante, não direi nenhuma palavra que não seja uma palavra boa. E se eu o maldizer por não ter vindo me buscar, leia então essa carta. Estaremos juntos, ainda que chova, eu sei que como eu gostas de caminhar na chuva. Leia e esprema o meu passado com crueldade, só assim saberei que fim esses amargos prazeres fizeram conosco. Não sei mais do meu amor. Não sei do que me resta fazer, não consigo imaginar todas elas. Então penso que esse é o meu lugar, aqui sou quem posso ser. Os desejos são bons companheiros e os desejados são um estímulo de dias melhores. E se a pessoa é para o que nasce eu vim ao mundo para isso. Para me entregar sem frescuras a esse prazer que me toma sempre que é noite e estou só. Sim, aqui se está sempre só ainda que alguém esteja ao seu lado. Aqui é frio ainda que abafado. É o meu lugar, sou intimo da falta de bondade e bons sonhos. Aqui não sonhamos, vive-se. E há no mundo melhor lugar que aquele em que podemos viver sem medo? Sem medo do futuro? Do mal que podemos nos fazer quando for tarde para voltar? A inocência ficou naquele carinhoso ninar que não voltam mais. É bom ter desistido, perdido. Não importa mais. Aqui quero ficar e me perder mais e me perder para sempre. Isso há de ser sina e não fará mal nenhum a você. O prazer é meu, o mal só eu poderei carregar. Me deixe aqui e poderei esquecer tudo o que não vivi. Me perca nos meios dos teus papéis, dos teus amigos. Não me faça personagem de histórias mirabolantes. Não me faça de herói. Estou longe de merecer o titulo que é de muitos. Venda a minha natureza, a essência que carreguei. Me leia sem muita atenção, deixe passar desapercebido. Não importa mais. Um dia nos veremos e ainda que chova e ainda sozinhos, teremos um ao outro em dias que não terminam.

Homem 1 encara Homem 2. Eles se abraçam, tão logo são apenas um. O Homem, o mesmo Homem. E abraçado a si mesmo, ele se encolhe. Sozinho. Ele e a chuva.

HOMEM
Não vou morrer.