6.12.06

Depois da esquina... Depois da chuva.

A chuva anunciara que seria assim. Caminham, os dois, dois homens no tempo que não é tempo. Esperam por dias que não são dias, horas que não podem ser contadas, num lugar que não se diz lugar. Apenas caminham na chuva e esperam. Se esperam?

HOMEM 1
Vou morrer?

HOMEM 2
Você não vai morrer.

HOMEM 1
Como sabe?

HOMEM 2
Apenas sei. Não faça mais perguntas, basta a chuva.

HOMEM 1
Eu tenho a sensação que ela está próxima.

HOMEM 2
É apenas uma sensação, nada mais que isso. Você está com medo, aceite e pronto.

HOMEM 1
Como aceitar o mal que trouxeste para mim?

Homem 2 o encara.

HOMEM 2
Disse que nunca me culparia.

HOMEM 1
Como diria se sempre o culpei?

HOMEM 2
A carta...

HOMEM 1
Que carta?

HOMEM 2
A carta em que me perdeu. Escreveu que não me culparia.

HOMEM 1
Não posso...

Homem 2 tira a carta de do bolso e a lê.

HOMEM 2
Não sei se essa carta vai chegar ao destino. Há muito que não tenho noticias suas. Já era raro te ler e agora com esse silêncio todo de palavras e de seus dias, temo por você. De certo modo temo por mim também. Sofro com antecedência permitida de um mal que podes me provocar. Espero não culpá-lo e se isso fizer, guarde essa carta. Onde procurá-lo? Tudo ficou mais escuro que antes. Se o vejo não o reconheço. Se não o reconheço é porque mudou muito ou talvez tenha me esquecido de você. E isso é uma mentira. És vivo em meu olhar e nas histórias que conto. É você que vive, ainda que ausente, nas minhas idas e vindas e tudo tem você sem lhe ter. Estranho assim mesmo. Não sei explicar como posso te viver sem o ter. E o mais estranho é que se foi sem que tenha partido. Não sei chegar em você, tocar, dizer o que deve ser dito. Quando penso que desisti me pego escrevendo sem medidas e mentiras. Escrevo no desespero de um momento sem fim. No desejo de encontrá-lo e arrancar de ti essa coisa que não é tua, esse pesar que não é seu. Hoje sei dos corredores onde se perde, sei dos caminhos tortos, das luzes amarelas, estranhos que te abusam nesses mofos estofados azedos do seu novo lar. Queria poder fazer mais por você e assim faria mais por mim. Falo isso porque iremos nos encontrar um dia e sei que a morte nos rondará, sobretudo quando chover forte e estivermos sós. Quando a chuva chorar a nossa desgraça, dos dias amargos, você levará tudo de mim. E eu não vou te impedir. Nada direi quando arrancar do meu peito a inocência que ainda cedo perdeu. Vou recordar nas suas palavras dessa carta, desse dia, desse mais um dia em que me faltou sem que se quer tenha partido. Agora sei que o perdi e que não posso mais procurá-lo. No momento em que aceitei te perder foi que te perdi. E isso foi nesse instante. Então, se essa carta chegar em vossas mãos, mesmo que as luzes sejam poucas e a esperança ainda te cobre mais suspiros, não sofra por mim, seria inútil, sofreria por antecedência. Também não sofra por você, as palavras belas partirão desse cru lugar. Não se agrida e preserve a essência, só assim nos reconheceremos em tudo aquilo que nos une e nos separa.

HOMEM 1
Lembro dessa carta. Você a guardou.

HOMEM 2
E você desistiu de mim.

HOMEM 1
Desisti de nós.

HOMEM 2
Por que não foi me buscar?

HOMEM 1
Você não deixou.

HOMEM 2
Sempre te esperei! Dia após dia eu esperei você chegar!

HOMEM 1
Você mandou que eu aceitasse os seus sujos e imundos desejos. Que esperasse um dia, nessa chuva, que você me procurasse.

HOMEM 2
Me lembraria desse detalhe ao contrário de você.

HOMEM 1
Isso! Exatamente isso, ao contrário de você! Quer que eu leia a carta que escreveu no escuro?

HOMEM 2
Certamente ela não o inocenta.

Homem 1 tira a carta do bolso e a lê.

HOMEM 1
Ainda que tarde, sempre recebo as suas tristes cartas. Digo tristes pois nada de alegre há mais em você. Sei que há mais consciência em você agora que está na luz que não cega. Sei que de onde estou não o vejo, apenas o idealizo. E sei que seria diferente. Imaginei tantas histórias e nunca pude crer que o veria triste e desacreditado. Então fico na espera sem fim. Porque tenho feito isso, te esperar dia após dia, sem te esquecer nunca. Mas você não vem mais, diz que me perdeu quando na verdade perdeu as cores coloridas de dias alegres e sem fim. Perdeu a vontade de fazer melhor do que somos hoje. Apesar da dor de um certo abandono ser forte e agora constante, não direi nenhuma palavra que não seja uma palavra boa. E se eu o maldizer por não ter vindo me buscar, leia então essa carta. Estaremos juntos, ainda que chova, eu sei que como eu gostas de caminhar na chuva. Leia e esprema o meu passado com crueldade, só assim saberei que fim esses amargos prazeres fizeram conosco. Não sei mais do meu amor. Não sei do que me resta fazer, não consigo imaginar todas elas. Então penso que esse é o meu lugar, aqui sou quem posso ser. Os desejos são bons companheiros e os desejados são um estímulo de dias melhores. E se a pessoa é para o que nasce eu vim ao mundo para isso. Para me entregar sem frescuras a esse prazer que me toma sempre que é noite e estou só. Sim, aqui se está sempre só ainda que alguém esteja ao seu lado. Aqui é frio ainda que abafado. É o meu lugar, sou intimo da falta de bondade e bons sonhos. Aqui não sonhamos, vive-se. E há no mundo melhor lugar que aquele em que podemos viver sem medo? Sem medo do futuro? Do mal que podemos nos fazer quando for tarde para voltar? A inocência ficou naquele carinhoso ninar que não voltam mais. É bom ter desistido, perdido. Não importa mais. Aqui quero ficar e me perder mais e me perder para sempre. Isso há de ser sina e não fará mal nenhum a você. O prazer é meu, o mal só eu poderei carregar. Me deixe aqui e poderei esquecer tudo o que não vivi. Me perca nos meios dos teus papéis, dos teus amigos. Não me faça personagem de histórias mirabolantes. Não me faça de herói. Estou longe de merecer o titulo que é de muitos. Venda a minha natureza, a essência que carreguei. Me leia sem muita atenção, deixe passar desapercebido. Não importa mais. Um dia nos veremos e ainda que chova e ainda sozinhos, teremos um ao outro em dias que não terminam.

Homem 1 encara Homem 2. Eles se abraçam, tão logo são apenas um. O Homem, o mesmo Homem. E abraçado a si mesmo, ele se encolhe. Sozinho. Ele e a chuva.

HOMEM
Não vou morrer.

Um comentário:

Anônimo disse...

Oi...Realmente você escreve muito bem...estou apaixonado pelos seus textos e suas citações do face...
Um beijo Grande.
Thiago Komova Gonzaguinha