30.12.07

As plantas da minha avó

Minha avó partiu. Mesmo que sua partida parecesse inevitável por arrastados mais de vinte anos, eu não disse o quanto a amava e hoje durmo me perguntando se ela sabia disso. Para me confortar, os amigos dizem que sim. Mas não sei, ainda assim preferia ter dito. Queria ter ido vê-la mais vezes. Contar da minha vida, dos meus planos, das minhas coisas. Queria ter sido mais neto e deixar que ela fosse mais minha avó. Esquecer um pouco essa coisa de mundo e me dedicar ao amor que tínhamos um pelo outro.Por outro lado tenho as melhores histórias para contar sobre ela. Orgulhosamente mais do que qualquer outro neto. É certo que sempre me senti como o filho caçula dos meus avós, o que fez que por um tempo eu visse minha mãe como uma irmã mais velha. O que tenho hoje são as lembranças dos dias ensolarados da minha infância com minha avó me levando para cima e para baixo. Aquela mulher de unhas grandes, rosas, personalidade forte, engraçada sem querer ser. Essa era minha avó.Durante muito tempo achei que as pessoas a temiam. Hoje percebo, talvez por que minha mãe tenha herdado o mesmo gênio, que ambas são admiradas e muitas vezes a admiração e o respeito se confundem com temor. A verdade é que minha avó, ainda que analfabeta, ainda que errando em palavras simples como vassoura ou maçã, era uma mulher à frente do seu tempo e por isso tenho orgulho de dizer que era incompreendida por ela mesma na grandiosidade que nem ela sabia existir dentro dela.Vou fazer questão de a cada novo amigo, cada bisneto, cada pessoa que cruzar o meu caminho a partir de agora, vai saber da Dona Nega e suas histórias. Das colchas de retalhos, os tricôs, as almofadas, o pé balançando onde ela me colocava de cavalinho, a adoração por plantas, o cural de milho, arroz doce, feijão com barra de chocolate! Não se pode esquecer coisas tão simples e tão amáveis. Não dá para esquecer a imagem dela andando pela cidade com minha foto estampada na camiseta.Minha avó partiu e com ela uma parte grande de mim. Num mundo tão duro e desconfiado, onde tudo é descartável, até mesmo os sentimentos, perder uma pessoa que nos amava com todo o amor sincero, é mais que motivo para luto. É uma perda que nem o tempo ou que novos amores poderão reparar. O amor da minha avó por mim era único e eu lamento nunca mais provar que fosse um tiquinho dele.O que me deixa feliz realmente é que ela foi esperta como eu imaginava e deu um jeito de ficar por aqui. Seja nas fotos, nas suas tranqueiras, nas suas plantas, nos filhos e nos netos. Minha avó era uma jardineira que plantou não apenas as arvores e as flores que estão vivas e crescendo por ai, ela plantou pessoas que certamente serão gratas a ela sempre por esse gesto tão puro de Dona Nega.

17.9.07

Nada de nada de nadinha de nada

Quase escrevi um texto engraçado. Destes com rimas fáceis, sonoros, divertidos, pensados demais. Quase escrevi algo que fizesse você rir pra falar do recomeço. Como sempre, você que não é você. Você que apenas uma massa sem cor, sem modelagem, sem cheiro e sem som. Você que é apenas uma massa que ainda insisto caber na forma que tenho em casa. Você que injustamente chamo de você. Ora porque não quero lhe dar nome, ora porque penso que você não existe, ora porque você já existe e conhece o meu olhar. Você, a quem não sei mais se espero ou se procuro, em algum lugar deve estar. Volto a becos escuros procurando uma forma de me enganar. De enganar mais um dia, tapear algumas horas, acordar tarde, com um gosto amargo de final que não acaba. Estou recomeçando. Não há o que faço melhor do que recomeçar. Se estamos recomeçando todos os dias então estou falando desse recomeço consciente. Aquele repleto de promessas, de listas com tarefas, frases proféticas, posturas reguladas, metas traçadas, estratégias debatidas com os amigos. É deste, e novamente deste recomeço que falo. Mais uma vez. É quando percebo que é um breu, aparentemente como aqueles becos, mas com saídas para todos os lados. Vou subir num caixote alto, ver a cidade, repetir canções de dias apertados e pensar em você que ainda é uma massa sem forma, sem nada, sem nada de nada de nadinha de nada de coisa alguma. Você que é apenas um pronome. Estou te esperando, ou procurando. Não sei. Você sabe que é você, então venha logo ou faça um sinal.

11.7.07

25.5.07

.um instante sem foco.

Uma canção abafada que cheira a coisa caseira misturada com frio intenso e dores baixas e passageiras. Um instante sem foco. O bilhetinho eletrônico denuncia seu arrependimento e agora se pode dormir com alivio no coração. Acorda assustado no meio da noite, sente o gelo da madrugada e aos poucos percebe nada perdeu. Não perde mais o sono, logo mais é cedo e tão cedo pra realizar seus planos infantis. Logo esse instante estranho dos perdidos vai se tornar história velha e vai buscar lá nos braços de sempre o abraço que renunciou. Sacolejar no trem da felicidade calma, dos dias de saudade, nesse primeiro ano de seus novos suspiros. Dorme na nuvem que o abraça, em lençóis tão iguais e invejados. Dorme calmo pois logo irá acordar. Seu instante triste e sem foco é só a punhalada daquela coisa que sempre o salvou no último minuto. Mas mais uma vez o pesadelo acabou e ele pode vomitar os parafusos e os sapatos desamarrados e se preparar pra ir na rodoviária. Basta acordar na próxima manhã de maio.

19.3.07

Quando se caminha sem brilho

Já posso sentir o frio no vento da manhã. Caminhar na rua com a lembrança recente de geladas palavras que não voltam mais ao que eram. Pensamentos abstratos, diluídos na mente e que ao virar esse símbolo de algo que incomoda ou que martela ou que acomoda a aflição, já não volta a ser apenas o silêncio de momentos atrás. “Guarde para mais tarde”, é assim que ouvi. Não posso deixar que minhas palavras virem celas de uma prisão então tenho que evitar teimar pelo caminho de brilhantes. Perde um pouco da mágica, pois nunca desisti por achar que trariam o sapato em tamanho acertado para essa caminhada. E que não faltaria cumplicidade. Talvez tenha sido construído um mundo que não existe, e devo romper com esse jeito maldito de pensar. Vou perder os brilhos nos ventos frios das ruas. Vou perder trechos de belos sonetos nas manhãs comuns. Dias como qualquer outro, perder cena a cena os belos planos jamais feitos. Conviver com o cinza que me embalou e esquecer, como se meus olhos jamais tivessem visto, o colorido que surgiu quando já estava quase cego. A força me empurrou pra margem, e se falo outra língua que não separou palavras pra descrever o apelo, devo me agarrar num galho de espinhos que me arranham e que me farão aprender na dor e nas coisas comuns. Pode ser que eu seja salvo ou pode ser que acabe como sempre acabou. No fim das belas palavras, que secam, que somem até nada a ser. Até ser silêncio e vazio num coração.

15.3.07

Brega

Não posso mais fingir, esconder no olhar. Não tenho mais a força de inventar sorrisos e momentos que já não existem. O coração sabe o que preciso e já não me satisfaço em imaginar lá onde tudo era tão pequeno e tranqüilo. Debaixo de goiabeira de goiabas bichadas, o avião levando o “Brinquedo” que fazia todos chorarem e seus lenços brancos. A moça engraçada de cabelo rosa gritando no rádio, o monstro famoso dançando no cemitério me dava arrepios e mesmo assim tudo era tranqüilo. Eu queria mesmo voltar lá, nas luzes grandes amarelas. Me lembro delas e de todos aqueles insetos em volta. Queria poder dormir no banco de trás e não prestar atenção em briga alguma de adulto. Ficar vendo o céu de estrelas e de postes iluminados. Ver passar como em fundo de desenho, repetindo imagens e nunca me cansar de assistir. Ser pego no colo sem que precisasse deixar de sonhar, sem ter que acordar pra ver o mundo mudar, sem ter que partir, sem nunca ter que partir. Queria voltar e ter mais do que sangue proibido pra oferecer. Te levar comigo e dividir contigo os meus brinquedos. Dois pequenos dividindo a mesma dor que talvez ainda não doía. Eu te mostraria que há um mundo debaixo da mesa da cozinha, rindo de dedões e comendo suspiro. Inocência cúmplice e solidão nunca mais. Queria muito poder voltar e te levar comigo. Que fosse meu vizinho, que emprestasse seus cadernos, que excluísse todos os outros por mim. Eu faria o mesmo. Eu te defenderia, apanharia por você. Cada toque seria um toque puro de reconhecimento, um se encontrando no outro, daquelas desgraças que eles nunca entendem. Eu preciso voltar lá com você. Não é justo não nos deixarem fazer isso. Tudo agora seria diferente. Não existiriam tantos medos, todos esses becos, essa distância, esse mundo que ignora o que estamos sentindo. Faltou você naqueles singelos dias. Nas tardes cheirosas de produto de limpeza onde você era apenas um amiguinho imaginário que um dia deixei de crer. Deixei de acreditar e as luzes amarelas se apagaram. E antes que eu pudesse lamentar mais do que faço hoje você chegou. Tarde pra me ver sem a armadura, mas cedo pra ouvir o quanto me faltou e o quanto ainda quero estar ao seu lado.

24.2.07

Dream come true

Tive sonhos em dias passados. Um batuque primitivo. Um carro moderno, uma noite quente e estrelada. Uma avenida a beira mar. A onda batendo vendo o mundo passar. Aquele querer misterioso. A dúvida familiar. O vazio crescente. A tristeza ali do lado sorrindo ingênua sem saber o seu papel naquela cena. Do outro lado a imensidão sem fim de possibilidades intermináveis. Repleta de doces surpresas. De castelos construídos com carinho. Camas com lençóis limpos. Sol e barulho de vento em copa de árvore. E nada, nem o querer pulsante e vivo me tirava daquela estrada de sonhos impossíveis. Quis muito sem saber o que queria. Sem saber se teria, sem saber se o terei. Sonhos e sonhos e abafadas noites no lado proibido de tudo. Naquele canto que poucos ousam caminhar. Naquelas areias sensíveis, que choram quando se pisa, de grãos delicados e brilhantes. Não se pode sair dali sem tais sonhos, sem que se queira sair. Esperei que fosse pra mim. Entoado ao som de instrumento familiar. Comigo você não pinta e não borda. Não faz declaração no meio da rua. Será que não permito tal deslize? Será que faço errado em mergulhar no mar? Viveu lá as várias possibilidades do amor, de forma doentia, sem saber se amava, sem que lhe dessem a esperança. E talvez estejam todos cansados demais para atravessar de lá pra cá. Não há mais “kamikazes”. Há palavras velhas escritas e imortalizadas em peitos fechados que recorrem a velhos amores para não ter que fazer a viagem até aquele lado, onde a noite é abafada, onde a areia choraminga e onde os sonhos te levam ao fim.

23.2.07

Pequena mordida das esperas da vida

Sinto uma perturbação e não dou muita atenção. Quando me perturba demais eu vou ver é uma formiga me picando. Será que ando doce? O cucurucu tá nos 50°, calor infernal, não pertence a esse pedaço de terra alta da serra. Os dias tornaram-se exercício de imensa paciência. Espera daqui, espera dali, espera de todos os lados e as únicas que parecem se importar são essas minúsculas formigas que me picam pra dizer que ainda estou vivo. Será que é isso o que elas querem dizer? Ou será que querem, de pequena dolorida e de pequena mordida, levar a esperança pra longe de mim? Tenho que descobrir onde fica esse formigueiro. Preciso de esperança e mais do que isso, preciso de respostas, preciso de ações, preciso parar de ter que multiplicar paciência. Isso e o calor vai causar um imenso curto circuito! Tenho que parar com esse vicio de querer chegar em casa e escancarar a janela pra deixar a brisa, suave brisa, me lembrar no silêncio da noite quente, que ainda há chance e que tudo vai dar certo. Mas é um vicio, e como todo vicio, vai me levar de certo a uma rua escura com fundo infinito. Preciso saber o que há depois daquele ponto. Preciso decifrar melhor tuas palavras. Preciso escrever cartas e mais cartas. Preciso ir fundo no fundo profundo do formigueiro. Preciso de paz. Sorrir em paz e alivio. Enquanto isso, por favor, um pouquinho mais de virgindade!

20.2.07

Do lado de fora

Ninguém entende quando conto essa historinha. É terrível perceber que não sou o que os outros me convenceram que eu era. O mais terrível que me convenceram com a minha ajuda, com a minha patética contribuição apoiada por medos que explico com a historinha. Era Natal. Acho que 1986, lembro que meu irmão era ainda um embrulho chorão e com cara de joelho, então só pode ser em 1986. Passávamos o Natal na casa da tia “rica”, que tinha a maior casa, o maior quintal para que eu e meus trezentos primos pudéssemos brincar. Aquela grande casa tinha quintal na frente, quintal nos fundos, quintal embaixo. Tinha até uma casa na parte de trás. Um quarto e cozinha bem parecido com o que morava na época com os meus pais. Os filhos dessa minha tia tinham os brinquedos que sonhava ter, então ir na casa dela, seja no Natal seja em qualquer dia do ano, era como ir na Terra do Nunca. Espaço pra correr, brinquedos pra brincar, outras crianças dividindo a infância comigo. Essa historinha não é uma lamentação sobre o que eu não podia ter na época. Não é uma daquelas histórias que a gente guarda pra mais tarde jogar na cara de um filho mimado mostrando pra ele o quanto poderia ser difícil a vida dele. Minha vida não foi difícil. Não ter o gato guerreiro do He-Man ou o Pogoboll não era nenhuma dificuldade pra mim, não serei hipócrita. Estávamos brincando no imenso quintal que ficava entre os fundos da casa da frente e a frente da casa dos fundos quando os adultos chegaram. Chegaram correndo e entraram no pequeno quarto e cozinha. Eu nem teria percebido se eles não tivessem deixado entrar com eles todos os meus primos pequenos como eu. Aquele quintal nunca foi tão grande. Só havia eu ali, sem saber se era do lado de dentro ou do lado de fora. Bati que queria entrar e eles riam. Na porta da cozinha da casa grande as mulheres riam limpando as mãos nos aventais. Lá dentro, risadas de crianças misturadas e risadas de homens misturadas com barulhos de ferramentas. Eu tinha cinco anos e queria entrar. Eu não tinha idade pra entender daquelas risadas, o por que de me deixarem do lado de fora, mas entendia perfeitamente que haviam deixado entrar todas as crianças. Comecei a chorar e então eles riam mais ainda. Não estava curioso, não estava irritado com os risos, estava apenas me sentindo excluído, me sentindo pela primeira vez diferente dos outros. Mas antes que o meu choro pudesse se transformar num desespero total a porta se abriu, as crianças saíram correndo, meus tios e primos mais velhos também, até que sai meu pai com uma pequena bicicletinha. Não tenho como dizer como ela era, talvez azul e branca com rodinhas, realmente não lembro. Em fim, o primo que não tinha bicicleta agora tinha a sua. Logo eu estava cruzando todos os quintais com minha bicicleta e esqueci o que tinha acontecido. Achei que havia. Não sei como era a bicicletinha mas sempre me lembro, as pessoas sempre me fazem lembrar daquele dia. Quando contei para um amigo, a quem confiava muito, sobre essa história, ele simplesmente disse que a gente lembra daquilo que queremos lembrar. Mais ou menos como se lembrar apenas das vezes em que apanhamos, que sofremos, que doeu, que foram injustos com a gente. Quis dizer que nos lembramos disso porque nos favorece e que ao lembrar dessa história eu estava ferindo a boa intenção dos meus pais naquele dia. Traduzindo: ele me chamou de filho ingrato. Entendo perfeitamente a necessidade dos meus pais em me fazerem surpresa naquele dia. Até entendo que deixaram as outras crianças entrarem, de fato não teria chamado a minha atenção se só os adultos tivessem entrado com uma caixa do tamanho da bicicleta que eu ainda não tinha. Foi a forma que eles encontraram, ou melhor, que eles escolheram de presentear naquele Natal. E como entendo, sempre esperei que entendessem também o que tal episodio causou. Gostaria muito que entendessem que não consegui esquecer e não foi pra jogar na cara ou arrancar alguma piedade de alguém. Na verdade eu não sabia porque me lembrava dessa história todos esses anos, e hoje acho que aprendi, ou entendi muitas das coisas que aconteceram entres esses 21 anos. A dor da exclusão, talvez germinada numa coisa tola de surpresa de Natal, ficou latente e se tornou o grande Bicho Papão. Não se diz o que uma pessoa sente, não se diz o que uma pessoa deve fazer com suas histórias. As vezes elas se repetem com novos personagens, com as mesmas “boas intenções”, com um pouco de falta de consideração ou de atenção. As vezes se exclui sem saber que está excluindo, sem saber a dor que isso causa no outro. Pessoas amigas, pessoas queridas, pessoas que amamos e nos amam, percebem onde dói a dor no outro e a evita. É por isso que elas se amam, entre as coisas boas todas, está a de amenizar as ruins. Levei muito tempo acreditando que eu estava errado. Passei muito tempo ajudando os outros a me convencerem que minha forma de me doar, que o meu jeito de amar estava errado. E hoje, exatamente hoje, uma única pessoa, que está a quilômetros de distância de mim, consegue entender se não o por que dói, compreende pelo menos que dói, e isso basta pra me poupar e me proteger como fazem as pessoas que nos amam. Não vou declaram guerra dessa vez. Meu país declarou paz e vai continuar assim. Pedi muitas desculpas por coisas que não fiz só porque me convenciam que tinha feito. Não vou mais entrar na onda do descontrolado que perde a razão porque demonstra o que sente. Aprendi uma lição nesse carnaval. O mundo é muito grande. Hoje não preciso mais chorar na porta, do lado de fora. Existem inúmeras portas, se não me abre essa, pouco importa se o que você tem ai dentro é uma bicicleta, eu vou procurar outra. Não se deixa um amado do lado de fora, nunca. E sem piedade, e sem revolta, e com certa magoa, e agora com certa esperança. Mais do que nunca contando dias. E antes que me ligue (se ligar) eu sei do fundo do meu coração que não foi de propósito, mas dói mesmo assim.

16.2.07

Casamento

Me peça em casamento e sejamos felizes. É! Simples assim! Você chega com um anel grande, daqueles de joalheria chique que nem a do shopping, sabe? E não importa se for à prazo, quem pode me dizer que esses ricos por ai não compram esses carrões à prazo? Eu sei que você não é rico, pouco importa. Quero casar com você mesmo assim. Coisa na igreja, de padre, madrinha, Ave Maria, arroz e briga na festa. Arranja um carro bacana com um daqueles seus chefes bacanas. Mas tem que ser coisa bacana, se não fica feio na foto. E por falar em foto, agora tem uma tal de fotojornalismo, coisa fina. A sobrinha da patroa da Veruska que fez. Vou parecer uma princesa! Passo do dia no salão do Cleyton, faço unha com a Menininha, maquiagem com a Jéssica e cabelo com o Tonton e pronto! O vestido? Vou com Dona Zéfina lá naquela rua das Noivas. Ela olha e guarda assim na cabeça. Ai chega e faz igualzinho naquela maquininha dela. Aquela que você reclama do tec tec tec tec na madrugada! Também, pra dar de comer pro bando que ela colocou no mundo, tem que costurar dobrado. Bolo com recheio de pêssego. Não quero nem saber! A Juju é alérgica a pêssego, mas eu amo. Quero muito pêssego, muito, com calda escorrendo. Cobertura de glacê, com cereja, aquelas bolinhas prateadas, e quatro andar, que nem o barraco da Valdirene. Um espetáculo! Bolo de casamento é assim, quanto mais alto mais chique. Falta as duas taças que eu mesma vou comprar nas Americanas. Você compra champanha da boa, não vai comprar sidra que eu peço a separação ali mesmo. Apesar que separar assim depressa é tão chique. E a gente nem precisa dividir os presentes. Então me pede em casamento. Com um anel bem lindo. Ajoelha assim na minha frente, diz coisas bonitas, coisas bonitas só pra mim. Vamô realizar nosso sonho, nossa casinha, o casal de filhos, os fins de semana na praia, os churrasco, a faculdade das crianças. Seria muito mais fácil, tudo mais fácil, se você não fosse apenas um retrato.

13.2.07

O regime semi-aberto de Pano de Chão

Quando apareceu na rua, o país ainda acordava sem saber quem era o pequeno João Hélio. Os dias pareciam estranhamente calmos, a brutalidade está sempre lá, no outro. O desespero, a dor, a perda nos comove e só. Mas quando Pano de Chão decidiu que a rua Alemanha seria o seu próximo lar, talvez intuísse que poderia encontrar ali um canto para repousar seu sofrimento. O vi apanhando de um vizinho, desconhecido pra mim como a maioria, ao dormir encolhido na frente de seu portão. Não reagi. Não enfrentei e confesso o quanto sou covarde de peitar essas pessoas. Então escrevi aquele texto de dias atrás. E quando escrevi eu não imaginava os rumos da minha história com Pano de Chão. Prefiro escrever isso agora do que esperar para descrever, a quem sabe daqui quarenta anos, como lembranças da juventude em Diadema. Como recordações dos meus queridos pais, como os que nomeiam ruas ou inauguram bustos em praças. Se Pano de Chão escolheu nossa rua entre tantas outras é porque certamente algo ele queria e algo ele podia nos dar em troca por isso. A vida passa com poucos brilhos. As pessoas vão se tornando repetições de mesmices, não se pode esperar mais de ninguém, muito menos de si mesmo, vide a minha atitude ou melhor, não-atitude, com o vizinho infeliz. Meus pais sempre me surpreendem com uma carta mágica na manga. Generoso, meu pai, colocou um punhado de ração do Paco e da Lara, na calçada. No dia seguinte um pouco de água num pote de margarina, e no outro dia, para desespero do casal de salsichas, Pano de Cão dormia na garagem. É o limite, mas é o melhor do que qualquer outra pessoa da rua que ou distribui pancada para o cachorro ou simplesmente ignora a sua presença. Brincamos que ele está em regime semi-aberto, dorme durante a noite na garagem e passa o dia na rua com suas estripulias caninas. E desde aquele momento, chorando ao se proteger do temporal que caía, quando meu pai entendeu o seu pedido, não deixe me molhar aqui, sabíamos que algo mudaria. Pode não ser ideal, mas basta para aliviar o peso do bonzinho Pano de Chão e por ter feito com que eu não esquecesse quem são os meus pais.

11.2.07

Rotina ou Apelo

Não é muito cedo quando acordo. Pelo menos já é tarde para muitas pessoas. Não é tão quente o leite que tomo. Ainda tomo com Nescau quando criança. Geralmente dou um “tô indo” ou um simples “tchau” de longe mesmo. E nem é pela correria. Penso nele no caminho e penso que vai ser mais um dia. Abro as persianas, as janelas, ligo o computador se a secretaria já não o ligou. Sintonizo o rádio na Eldorado. Abro e-mail pra ver se me escreveu. Abro orkut esperando um recado. Leio as noticias. Tristes noticias de crianças sendo vitimas. Blogs políticos. Blogs de amigos. Perde a graça. Me canso. Leio jornal, quando há jornal. Vejo a rua, as pessoas que passam pela rua, quase sempre as mesmas nos mesmos horários. Tento ler um livro pra pensar menos nele. Tento pensar num roteiro e mandar pra ele. Almoço mais do que posso suportar. Assisto desenho e volto pra janela. Passo tardes pensando em nada e pensar em nada hoje em dia dá tanto trabalho. E quando me dou conta é noite e estou deitado com a janela aberta pro calor sair. Pensando nele, pela centésima vez no dia. E antes que o dia termine, penso que posso mesmo chegar a Plutão. Quando ele souber o que escrever na legenda da nossa foto, talvez a gente embarque definitivamente para nosso planetinha.

10.2.07

Mictorium

Dois anos atrás percebi que havia ficado invisível. Já havia tido provas da minha insignificância em outros momentos, mas só me dei conta quando aquele mendigo sujo, tão mais invisível à maioria de nós, esmolou os dois que estavam à minha esquerda e àquela bonita jovem à minha direita no ponto de ônibus. Nenhum gesto, palavra ou olhar pedante ou humilhado para mim. Portou-se como se ali eu não estivesse. E naquela tarde senti a dor da indiferença. Minha mãe tinha obsessão por desgraça. Intuía, ainda moça, que sua vida seria sucessivas desventuras trágicas. E antes de morrer num incêndio na fábrica de calçados onde trabalhava, perdeu os pais num acidente de trem, o marido, meu pai, vitima de assalto, meu irmão mais velho, atingido por bala perdida e minha irmã mais nova afogada na enchente de verão. Morreu num incêndio e restou eu. Morreu acreditando ter levado consigo a desgraceira toda. A maldição que arrastara consigo todos aqueles anos, vitimando os que viviam a sua volta, até por fim a si mesma. Pensei, ileso à toda a sina familiar, que fosse um destes adotados. Mas bastou o mendigo ignorar os meus trinta centavos e me fazer lembrar, até então esquecidas, situações em que não poderia nem ter existido e elas teriam se passado exatamente como recordava. Os dias seguintes foram de intensos testes. O traste maltrapilho poderia simplesmente não ter ido com a minha fuça. Pode ter me achado tão ou mais esfarrapado que ele. Na dúvida me pus a testar minha existência. Ônibus sem passar na catraca, cinema sem pagar. Eu não era impedido, não era notado. Não era paquerado ou desrespeitado. Não era nada. Deduzi, por fim, que somos o que somos para os outros. A medida que perdi minha família e que não tive capacidade de criar novos laços, deixei de existir. O odiado existe enquanto existir ódio no outro. O enamorado vai existir enquanto houver amor por ele em sua amada. O pacto cruel da existência. Viver nada mais é que pactuar todo o tempo com o máximo de pessoas que couber numa agenda telefônica. Estabelecer vínculos de sentimentos, de necessidade, de desejos. Foi assim que fiquei invisível. Assim mamãe deixara a minha cota de desgraça e um pouco também de suas manias obsessivas. Mas nunca compartilhei por seu gosto pelas histórias de finais nada felizes. Confesso que meu vicio é bem mais complicado de se compreender. Tenho tara incansável por homem mijando. Coisa de moleque, de espreitar o irmão, os garotos no colégio, qualquer bêbado de rua e seu glorioso jato amarelo. Quantas vezes, nas viagens nos coletivos, não virei a cabeça pra ver, ainda que de relance, o belo de um mijão. Mas, até a desgraça da invisibilidade, nunca pude chegar perto tão quanto gostaria. Me aventurei em imundos sanitários públicos, mas o medo me impedia e tornava o desejo ainda mais desejoso. E não havia pretensões maiores a não ser contemplar aquela mijada, ouvir aquele barulho de mijo correndo na água, quando vaso sanitário ou o ruído de água batendo e espirrando no metal naqueles grandes mictorios, meu prateado paraíso. A invisibilidade, a indiferença deles todos me deu esse prazer de assistir de perto, de muito perto ao ponto de sentir ácidos odores. Uns amarelos, outros alaranjados, alguns bem limpinhos como de bebês e ainda os com sangue, denunciando alguns excessos. Contemplei abraçado por trás, fungando em pescoços que se quer imaginam que outro homem os roçou. Muitas vezes agachado, encostando a cabeça na cintura, abraçando grossas coxas, ouvindo pequenos gemidos. Sim, existem alguns que gemem como se estivessem mergulhados no êxtase do gozo dentro de suas comportadas esposas. A maldição de mamãe então não era tão ruim assim. Ser ignorado era um prazer que me proporcionava compartilhar das melhores e variadas mijadas. Mas foi quando aquele homem forte, com mamilos endurecidos e pele morena e brilhante de suor, entrou no banheiro que senti que ali escondia o maior de todos os prêmios. Se colocou na frente do mictorio com seu enorme membro pra fora. Só, os dois naquele sanitário que cheirava a merda curtida e papel higiênico molhado. Fiquei ao seu lado e o belo homem forte, dono de um membro repleto de saltadas veias parecia esperar por algo para despejar seu dourado líquido. Foi quando deu-me uma olhadela com canto de olho e sorriu. Com a mão desocupada, procurou pela minha e a colocou segurando aquele amolecido e escuro músculo. E então pude sentir em fim o líquido passando pelo estreito canal, vibrando a quente pele. Quando terminou, deixando cair a última gota, eu segurava algo duro, rijo, que já não necessitava do apoio de minha mão para manter-se firme. Com um só empurrão me jogou para dentro da fedorenta cabine sussurrando que havia guardado o bastante para me inundar. Segurou-me forte, com estocadas precisas, me banhando com todos os seus líquidos. Disse um inusitado “amo você”, e largou meu cansado corpo ali. Cansado e satisfeito para espanto e indignação de todos. “Sua bicha imunda!”, alguém gritou. Eles me viam. Estavam horrorizados comigo. Eu gargalhava. Eu apenas gargalhava.

1.2.07

Barra de download

Tenho pensando nas coisas, nas pessoas, nas relações entre as pessoas, nas minhas coisas, minhas próprias relações e no mundo como barras de download. Onde eu vejo uma pessoa não vejo mais uma pessoa. Vejo ali uma barra de download. Quando penso na relação que tenho com um bom amigo, com o atual trabalho, no meu amor, vejo barras de download. E quando me pego sozinho, completamente só, quando os pensamentos estão bem distantes, bem diluídos num vazio enorme e limpo, penso no meu tempo como barra de download. A barrinha azul vai crescendo, tantos porcentos baixados, como passos dados, abraços apertados, histórias em porta retratos. Uma contagem regressiva, algumas barras crescem mais lentas outras se aceleram mais aspirando mudanças. O fato é que tudo começa pra acabar. Tudo acaba pra mudar. As vezes muda é pra não acabar. A Irlanda tá levando dois retalhos enormes de mim, o Rio guarda minha metade e São Paulo esconde todos os pedacinhos que se espalham bem aqui do meu lado. E o tempo vai passando, coisas mudando, outras acabando e a barra crescendo. Amanhã tem médico, então vou fazer como manda a cartilha pois seja lá quando, o arquivo deve ser concluído com sucesso.

29.1.07

Ao Pano de Chão

Poderia dar milhares de explicações. Dissertar futilidades. Futricar segredos alheios. Dissecar sentimentos mortos. Abastecer de junções numéricas. De sílabas em sílabas codificando a ansiedade que corrói, a falta de otimismo que transborda no copo acumulado e transbordado pelo jeito da Lua. Como dedo apontado pro lado do quadrado. Na barriga nada salientada, nos ossinhos finos aparentes de Pano de Chão. E com esse cheiro de chuva, uma molhada rua deve servir de descanso para o pequeno risonho, ainda que sem motivos para sorrisos. E à luz da lua, água da chuva, cheiro de coisa crua, nesse momento quase sagrado, penso mais em Pano de Chão do que nas coisas que movimentam o meu coração. Deve ser fuga desastrada embalada em músicas suaves, trilhas de filmes felizes, de momentos redondinhos, saborosos. Deve ser dessa velha mania de imaginar. Dessa velha mania que não some, que não me deixa, que não se ausenta e que inventa de ficar. No latido fino, no grito contido, nesse abandono de quem já não se diz abandonado. Pano de Chão sabe do que estou falando. Ele sente o barulho da chuva e sei que vê o clarão lá longe onde nunca poderemos tocar. Sabe que sofrimento é coisa que se esquece e que se lembra depois e que se esquece pra nunca mais lembrar e pra nunca mais ter que esquecer. Pano de Chão é forte e sabe disso. Franzino querido, sozinho na rua solidão, é ele quem sabe, o único talvez, a essência de sua existência já morta. Quando se perde tudo, ou a noção de tudo, pode-se achar um monumento em sua homenagem. Ainda que desconhecido, ou melhor, ignorado, Pano de Chão faz do seu dia a dia, de cada acordar, uma homenagem a si mesmo. E assim vai lá, de lá pra cá, a procura de um pedaço de chão mais seco, assim não se cansa, no já cansado corpinho, de absorver toda essa falta de atitude que temos por ele e porque não, com nós mesmos.

20.1.07

Quando fui chuva

Sonhei com você na frente de casa juntando água da chuva. Sonhei com você e eu era a chuva. Em potinhos coloridos você juntava a água que caia. Pois como chuva caída eu escorria e me perdia por todos os lados. Era chuva densa no céu, na terra eu era apenas um aguaceiro danado. Algo que podia estar em todos os lugares e ao mesmo tempo em lugar algum. Mas você e sua alegria, quase como uma brincadeira de criança, dessas mágicas que fazemos sem nem saber da seriedade do ato, me acumulou na forma de água que caía e então, de gota em gota, de parte em parte que se encontrava, você pode fazer com que eu fosse eu. As pessoas não devem saber a força da generosidade. Num mundo tão carente de tudo, tornou-se assistência social, boa vontade, quase como uma obrigação de sermos bons para mostrarmos o quanto podemos ser bons. A generosidade é mais que isso. A generosidade do meu amor é mais que isso. Quando alguém lhe vê caído, lhe estende a mão e ainda o deixa caminhar ao seu lado, isso é generosidade. O amor que hoje conheço tem dessas coisas: mão estendida, olhar atencioso, sorriso sincero, coragem e por que não, fé. A gente passa a vida fazendo o bem, vivendo amores que são apenas reflexos de boa vontade quando na verdade o que queremos, pelo menos era o que eu sempre quis, ter o que tenho hoje. A possibilidade, não. A realidade de um amor generoso que ama e que só por amar já se pode chamar de amor. Sem tempo. Sem lugar. E isso basta.

17.1.07

Cópias das chaves do apartamento azul

Sei que não podes estampar nosso amor em suas camisetas. Sei que não consegue gritar o sentimento que esperou uma vida para sentir. Sei que tem que ser assim, calado. E eu te quero. Sei de todo o silêncio. Das sutis demonstrações. Sei desse aparente vazio. Vazio de palavras, de sons e de toques. Sei da falta de tuas cores nos meus dias. Dos dias seguidos de mais dias sem você. Te sigo assim. E eu te quero. Sigo procurando a sombra de ti. Nos pedaços seus, espalhados aqui. Eu vivo assim. E eu te quero. Na falta de tudo e na certeza de que pensa em mim. Que me quer, que me ama e que não me esquece nunca. Volta pra mim. Eu te quero.

16.1.07

Frágil parte de mim

Sabe quando se acorda desejando que quase tudo à sua volta fosse diferente? É o que tenho sentido nesses dias. Não sei o que Deus está tentando me provar me fazendo lidar com a frágil parte de mim. Sei que é preciso esse contato e esse vácuo para a tal evolução que dizem que precisamos. Mas confesso que estou um pouco cansado. Devo ser mais imperfeito que a média das pessoas para necessitar de tantas provações seguidas. Ou Deus está de brincadeira comigo ou está falando muito sério, e todas as duas alternativas são assustadoras. A coisa já tá até amarelada de tanto que falo. Virou coisa repetida, voz em disco arranhado, conversa pra boi dormir, conversa que nem cobra-cega, não sabe onde começa e onde termina. Essa é a lamentação da minha relação. Já falei dela, já chorei por ela, já repeti essa história tantas vezes que estou me calando. Tô acomodando tudo numa caixa grande de ferro e fechando a escotilha. Logo vou lançar ao mar, sinto isso. Vou ficar lá, chorando pateticamente a coisa toda afundando e levando consigo tudo o que imaginei pra mim, toda a razão e justificativas que precisava para concluir sorrindo quem eu era. Mas essa pode ser apenas uma visão romântica de tudo. É do homem agregar fantasias aos fatos. Meu encontro pode ter sido apenas um acaso, vasculhei tantos perfis, resolvi deixar um recado, ele respondeu e aconteceu. Sem poesia. Sem essa de destino, desse “te sentia mas não te conhecia”. Apenas um encontro. Apenas isso. Sei que não é o momento pra você ler uma coisa dessa. Mas até mesmo por estar vivendo o que vive hoje é que pode, numa busca desesperada, me dizer que estou errado. Agora eu o conheço mas não o tenho, não o sinto. O amor tem que ser constantemente cuidado, dia a dia, pequenas coisas, gestos, que vai fazendo que aquela atração louca negada a tantos, negada por tantos, continue viva. É preciso ouvir a voz, ler longas cartas, troca de fotos, de carinhos, promessas. Não tenho isso. Isso está sendo negado pra mim. Sei que não é por que ele não quer e talvez com essa dor eu pudesse conviver, afinal já senti dessas febres. Eu apenas amo uma pessoa que me ama e só. Mais nada existe. Existe o que temos quando estamos juntos, em três curtos dias de meses em meses, e só. Isso já não é mais uma relação, e assim, pouco a pouco, ela vai se perdendo. Tento fazer o caminho contrario. Juro que estou lutando com todas as minhas forças para não trancar a escotilha, mas não sei até onde posso agüentar. O tempo está passando e tenho apenas o vazio inesperado na minha frente. Me antecipo a esse vazio monstro ou espero ele me acariciar... ou engolir?

13.1.07

O embrulho embrulhado em saco de supermercado

Combinaram na rua escura da Cinemateca. Aconchegou o embrulho em sacola plástica de mercado junto à parede de tijolos. Voltou para o carro. Estava minutos adiantado. Pensou em partir, mas se isso fizesse não teria certeza de ver a encomenda em certo destino. Não podia dizer que se escondia já que não se espreitava pela fresta de alguma janela. Estava assegurado atrás de vidros demasiadamente escuros de seu carro comprado à vista no ano anterior, dessa vez sem a ajuda do pai. Um carro seu, finalmente seu, mas que ali, parado na rua escura da Cinemateca, era apenas mais um estacionado como tantos outros. O relógio digital marcava a hora acertada. A idade avançou sem que aprendera a contar o tempo com a ajuda de ponteiros. Havia realmente se tornado um homem prático e igualmente solitário. As pontas dos dedos, gélidas, batucavam algo qualquer no volante. Um gosto de medo misturava com o gosto da ansiedade e descia garganta abaixo, deixando no corpo, no interno de seu corpo, o rastro de todos aqueles anos desde o dia que renunciou ao seu reinado. O príncipe de seus dias, monarca soberano de suas vontades, vivia até a triste decisão, em seu suntuoso reinado tranqüilo de amor e de apenas amor. Mas ele renunciara. E por isso deve-se entender que não se tratava de tão tranqüilo sentimento. E assim rompeu aquilo que não se deve romper, a promessa de amor eterno. É justo dizer que não rompera por completo prometidas palavras, ainda o amava apesar de abandoná-lo. Ainda tinha em si o amor que precocemente deixou, pensando assim, sabido que se intitulava, estar promovendo a salvação do outro. Excluindo essa hipótese, sobra-lhe a covardia de seu ato frio. Hoje, invisível condutor protegido pelos escuros vidros de seu automóvel semi-novo, sabia com extrema consciência da covardia de seu ato. Covarde porque o fez por medo. Covarde porque lhe faltava motivos para desprezar os sentimentos sinceros de Miguel e sobravam razões para controlar a insegurança que o perseguia desde que haviam se conhecido na festa de Loló. Foi calculista e irresponsável. Inventou uma mentira, disparou um “não te amo mais”, com confiança ensaiada dias no espelho. Sentia a vergonha de seu reflexo, do sofrimento que provocou a Miguel, condenando a quem o salvou. Estava sendo também, e porque não, injusto. O pobre Miguel havia de compreender, como em outras difíceis crises de Caio. Não pensou nesse tempo. Agiu de forma clássica e patética. Chegou a se perguntar se Miguel não desconfiara de tamanha mentira. E se teria, ao deduzir dias depois, semanas depois, anos depois, o procurado em catálogos telefônicos ou em buscadores eletrônicos. Desejava mesmo saber. Assim com frio que lhe assaltava a espinha sempre que pensava nos outros beijos que não os seus. Teria ele encontrado outro amor? Um novo amor que não se escondesse em mentiras desgraçadas para romper um sentir verdadeiro com a justificativa besta de proteção quando na verdade queria proteger-te a si mesmo? De certo Miguel não desconfiava que Caio o fazia estar ali àquela hora da noite. Caio era o seu passado e naquele passado Caio não sabia atravessar duas ruas em São Paulo que não fosse a Paulista e a Augusta. Ao deixá-lo, partira de volta para sua cidade. Miguel jamais imaginaria que seu carrasco, amado carrasco, escondera-se ali, ao seu lado, no seu lugar. E pode ser que nunca saiba. Afundou-se, inutilmente, quando algo aproximou-se do embrulho. Afundou-se no banco como se pudesse esconder no já escuro esconderijo. Mas logo estava tomado pela irritação. Um vira-lata qualquer, desses que dizem os mais inteligentes, investigou o então abandonado pacote em plástico vagabundo de supermercado, e sem receios, pois animais raramente os tem, e isso Caio e o cão tinham em comum, ele pensou, marcou o seu território com urina tão amarela que de sua trincheira o observador podia se contorcer todo em desespero. Foi-se então o cachorro fungando todos os cantos sumindo na escuridão da rua acima. E ali estava o pacote mijado, sozinho, à espera de seu verdadeiro dono depois de todos aqueles anos. Não era esse o plano meticulosamente planejado por meses e que a ninguém contou, até porque ninguém havia em sua vida para tal. Miguel estava atrasado sete minutos, é o que dizia o número digital de seu preguiçoso relógio. Podia não vir. Podia chegar a qualquer momento. Ou podia estar igualmente entrincheirado em seu carro. Seu ou de seu novo amor, talvez já não tão novo assim. Protegido por vidros escuros e braços avantajados. Pensou rápido. Saltou apressado, seqüestrou o embrulho e voltou para o carro. Na trincheira, com excessivo nojo e ódio do coitado do cão de rua, trocou o saco plástico. Não havia calculado aquela situação. Era o embaraço em pessoa. Poderia desistir então ou poderia até rir mais tarde de tudo aquilo. Mas sentia apenas vergonha. Vergonha de ser sempre ele, de ser sempre quem é. Um soco no volante resolveria tudo. Não, não resolveu. Precisava de controle, até porque Miguel poderia chegar. E seu medo era justificável. Dizia sua mãe: “o que mais se teme acontece”. E foi ali que percebeu que além de mãe havia saído de dentro de uma profeta pois Miguel estava no exato vazio antes repouso absoluto do embrulho. Embrulhado ficou o seu estômago. Era o mesmo homem que amou e que ainda amava por todos os anos. Estava mais velho mas igualmente belo como no dia em que o apunhalou. Sentiu-se ainda mais imbecil. O jogo não havia saído como planejado. O jogo não podia mais ser jogado. Miguel ainda esperou por alguns minutos. Um carro parou e ele entrou e os escuros vidros, uma moda talvez, não permitiu que Caio visse o maldito condutor. E assim Miguel partiu para além dos olhos do outro pasmado com o embrulho empacotado em limpos plásticos de supermercado no colo. Perdera a chance, se chance houvesse. Mas perdera sobretudo a oportunidade de redenção e de reviver sentimentos antigos. Perdeu e a perda chamava-se Miguel. A perda que demorou cinco anos para lhe doer na carne viva. Bastava voltar ao redentor, nem tanto, lar e chorar vendo o mar.

10.1.07

Amor peça de museu ou A Idade de todas as coisas

Posso sentir a idade das coisas. Posso sentir o peso do tempo. Ouvir vozes sobrepostas, de muitas épocas, de inúmeros sotaques, trejeitos, mania no falar. Posso sentir a idade da terra e de todas as coisas que se movem sobre ela. Posso tocar nos mistérios, naqueles segredos engolidos na solidão do universo, dos anos que se passaram sem que nada houvesse. Posso saber o que não sei e tudo o que me fora permitido saber. Como levantar o pano branco que cobre as velhas perguntas. Como todo o movimento calculado para me trazer até aqui nos meios das antigas coisas das quais agora sei a idade e o sofrimento pesado em cada lasca lascada, em cada tinta desbotada, em cada arranhão, marca maldita, pedaço mordido, pedaço arrancado, pedaço faltando. Posso confiar ao meu amor o porquê de todas as coisas existiriam. Posso lhe dar a garantia de ser o motivo de tudo ser, de tudo crer, de tudo estar fora ou não do seu lugar. Tudo foi assim, em anos separados, em lembranças que se engavetavam, outras ornam murais, estampam tristes camisetas de jovem idade. E então, no peso pesado das coisas antigas, no tudo o que sou além do que sou, penso muitas vezes desistir de um amor tão jovem. A noção de tempo passado, de muito tempo passado, se não é que se ter reduzida as passagens de muitas vidas. Como aquele piscar e no outro tudo fora do lugar, mudado, explosão universal de átomos e mais átomos que originaram células, micromundos, microvidas, microcoisas. Micro vírus envenenados de amor, de puro amor, de amor de morte, morte antiga, morte idosa, morte que existe já quando se nasce. Então quando lhe chamo de baby estou apenas lhe dando o prazer de desfrutar da outra ponta da linha do meu tempo. Do ponto de onde não pode sair pois não entenderás do tempo das coisas. Dos anos que se deve passar para não passar desapercebido a um olhar atento. Custa muito ser a si mesmo. Custa muito saber de tudo e agir como nada saber. Custa querer quando sabe-se que não o merece. A morte é amarga por isso. É o apelo avesso, é o grito tardio de vida. O roubo do sopro antigo. É dor da indiferença. Se isolar em datas antigas desperta esse ar melancólico. É a mãe de tetas grandes e ventre inchado da insegurança que se bebe em copos trincados no tempo. E se as coisas antigas de idades muito velhas, se peças envelhecidas, de coisas esquecidas pedem a desistência é por que elas compreendem o peso do tempo. A idade das coisas está nas coisas, na pele descamada sobre pele já maltratada. Está no beijo repetido. No átomo de amor partido. No amor que se parte. No amor jovem que envelhece e que envelhece e que se perde no tempo de todas as coisas.

9.1.07

Quando inventei que queria escrever um livro

Tipo, se eu fosse escrever um livro sobre mim, gostaria de escrever sobre tudo o que não fiz ou que não vivi. Torna a coisa mais abrangente e bem mais interessante pra mim e para quem lê. Tipo, ontem descobri assistindo a um documentário num canal UHF que gosto muito de The Mamas & The Papas. Minha ignorância musical me negava o conhecimento dos responsáveis de canções como “California Dreamin’”, e “Moday Monday”. E não só desvendar todos os mistérios dos pais de músicas que canto exaustivamente sempre que toca no rádio do carro ou nas festas de formatura, chatíssimas por sinal, (não as músicas, as festas), como me apaixonar por Mama Cass (quem não sabe, como eu até ontem, Cass Elliot é a integrante rechonchuda). Como ela cantava! Coloca todas essas pseudocantoras metidas a divas em qualquer saco que você possa imaginar. Que voz! Que presença de palco! Como eu quis muito ser amigo daquela mulher. Receber ela em casa, ouvir suas histórias, ouvir sobre a sua vida, ouvir como o excesso de peso não a incomodava, e ouvir ela cantar “Dream a Little Dream Of Me”.
Aproveite que você nasceu no tempo das facilidades e entra na Internet, num desses muitos buscadores de música e procure por essa. Certamente já ouviu. E certamente vai concordar comigo de que ela é belíssima! “Um sonho, um pequenino sonho de mim”. Lembra aquelas canções dos musicais da sessão da tarde. Na companhia da minha mãe e dos biscoitos maizena com leite. Pronto! Vou começar a falar da minha mãe. Bastaram menos de pouco mais de vinte linhas para falar dela. Não que não goste dela ou de falar sobre ela, mas é que andei percebendo o quanto é recorrente falar dela nas coisas que escrevo.
E na verdade, acho que é por isso que estou escrevendo agora. Não tenho a pretensão de escrever um livro. Escrever um livro é uma responsabilidade que não quero para mim, não nesse momento. Estou escrevendo para, por mais absurdo que pareça o que vai ler, me conhecer melhor. E é exatamente por isso que talvez apenas eu mesmo leia. Um psicólogo talvez, assim economizo pelo menos uma sessão (não sou pão duro, mas é tempo de cuidar das finanças pessoais). Talvez eu deixe os amigos mais próximos, Ri Antunes, Maíra, Bruna, Fê, Marcello cabeça de panetone. Os amigos de sempre para o mesmo de sempre: as lamentações do Cláudio. Talvez eu deixe o meu namorado ler. Talvez não.
Escrever sobre você (e aqui digo que não vou escrever sobre tudo o que não fiz ou vivi, para isso existem todos os outros livros) requer um computador, umas boas músicas, tempo disponível e um motivo. Tenho tudo isso. E tenho até um pouco mais, como diz a música. Então pronto: tenho um primeiro capítulo. Não! Não quero essa obrigação de capítulos. Gosto de organização, mas não quero capítulos. Capítulos me lembram a responsabilidade de escrever um livro e pior, terminar o livro a que se pretende escrever. E se não pretendo escrever um livro (não estou tentando te convencer que não quero escrever um livro quando na verdade quero só para conseguir a sua simpatia e ver onde isso tudo pode parar, realmente não vejo aqui a primeira página de um livro), então não pensarei em capítulos. Leia isso como um grande desabafo em partes.
Nesse exato momento, de uma noite quente do dia 19 de dezembro de 2006 (percebe-se a proximidade do Natal), estou sendo observado por meus dois pequenos cachorros. O Senhor Paco e a Senhorita Lara. Assim mesmo, os chamo de Senhor e de Senhorita. Um casal muito simpático com quem irei cear na “tão esperada” noite natalina. Minha mãe foi visitar meus avós no interior, meu irmão passará na casa da sogra (literalmente) e meu pai vai passar tomando conta da padaria. E assim passarei com Senhor Paco e Senhorita Lara. Até fui convidado para algumas festas (a que queria mesmo ir não fui convidado, mas entendo, ou acho que entendo, os motivos de não receber o esperado convite). Mas pensando bem, olhando para esses dois salsichinhas adoráveis, e sabendo que o Natal é uma data para se passar ao lado de quem amamos e de quem nos ama, então estou fazendo o certo. Amo eles porque eles me amam sem que eu precise pedir. Me amam sendo quem sou. Me amam e não pedem nada em troca (tudo bem, as vezes eles querem uns ossinhos), mas neles vejo a alegria que sentem quando chego em casa. Passar o dia de Natal com eles será um prazer. Não posso esquecer de dizer isso a eles e agradecer.
Dois mil e seis foi um ano com uns 742 dias mais ou menos. O ano incomum. Poderia dizer que foi o ano maravilhoso, mas não foi. Poderia dizer que foi o ano trágico, e também não estarei sendo justo. Acho que foi um pouco de tudo. O melhor e o pior distribuídos em comuns dias de um ano como qualquer outro. E fins de ano geralmente são melancólicos e repletos de saudade de coisas que ainda nem vivi, desse eu espero um pouco mais de..., melhor, não espero nada para não me decepcionar.
Minha intuição me dizia que muitas coisas aconteceriam na minha vida e receio que muitas delas já aconteceram.

8.1.07

Contar um sonho é proibido ou a Arte da impotência

Amado Amigo
Não sei em que condições esse e-mail vai chegar até você. Ou melhor, não sei como você estará ao ler. Uma das sensações mais duras que sinto é quando não posso ajudar um amigo, e é exatamente o que senti quando recebi sua ligação. Sei que existem muitas maneiras de ajudar um amigo, até mesmo num demorado silêncio. Mas quem dizer que se contenta em se silenciar diante da angustia vivida por um amigo, de certo não o ama como amo você. A impotência deve ser um dos males da nossa geração. Estamos espremidos entre nossos pais, bravos guerreiros que partiram do nada, e esses mais novos que já reconhecem tudo. Nascer no meio de tudo não é nascer apenas calçando o tênis da moda, tendo um vídeo game ou TV a cores. Nascer hoje é já vir ao mundo assimilado ou assimilando, como se esses pequenos olhinhos conseguissem ver o dobro, o triplo, inúmeras vezes por segundo mais do que nossos despreparados olhos já formados no cansaço e na limitação conseguem ver. Ainda assim somos uma geração de sorte. Temos quem fez por nós e não temos por quem fazer. Será que é sorte? Talvez para alguns que torram reais em lojas caras, não para nós. Nossa sorte está em dar, em ter, em sempre ter que dar a cara para bater. Sei que falamos sobre isso demoradamente no carro, e sei que você nunca compreende bem como espero que compreendas. Tem uma cantiga portuguesa que diz mais ou menos assim: "Quem contar um sonho que sonhou não conta tudo o que encontrou, contar um sonho é proibido. Eu sonhei um sonho com amor e uma janela e uma flor, uma fonte de água e o meu amigo. E não havia mais nada, só nós, a luz e mais nada. Ali morou o amor. Amor, amor que trago em segredo num sonho que não vou contar e cada dia é mais sentido. Amor, eu tenho amor bem escondido num sonho que não sei contar e guardarei sempre comigo". O que quero dizer com ela? Bom, as vezes é preciso desejar mais, sonhar mais, mas sonhar de sonhos íntimos, daqueles que temos vergonha de contar até para nós mesmos. Claro que não é uma regra, não é o certo, mas no mundo que criei, das coisas que vivi, sempre tive isso comigo: viver muitas das coisas que desejo nos meus sonhos, brincar comigo, com pessoas que invento como pecinhas de jogo de montar. É isso que fiz todos esses anos. Sei que é uma baboseira. Sei que não é muito racional. Muitos riem quando digo que passei todo esse tempo para receber o Guido ou para a pessoa que penso que seja ele. É preciso "treinar" e mais do que isso, querer de verdade. Querer por que todos querem não é querer. Achar que quer nem sempre é sinal de que se sabe o que se quer. E mesmo sabendo o que se deseja, mesmo assim pode não estar pronto para quando ele chegar. A ilusão é necessária. Uma pitada de loucura também. Sonhar, inventar personagens, dar a cara pra bater no mundo real e depois viver os desdobramentos de tal ato lá bem no fundo de lugares tão seus e tão secretos é o que penso, do fundo do meu coração, o que deve ser feito. Não é uma regra, mas foi como o Guido apareceu pra mim. Posso não estar certo, porém duvido também que esteja errado. Pacientes com diferentes moléstias precisam de diferentes remédios, mas será que nossa dor é tão diferente assim? Posso dizer que tive orgulho de você essa semana. Nossa melhor semana juntos, a mais sincera de todas. E você me fez sentir o que poucos fazem: desejo de fazer o que você fez! E por isso disse que você é o meu herói. Herói, como já disse outras vezes, é quem faz o que não temos coragem de fazer. Ou falta de coragem ou falta de tempo ou preguiça ou ignorância mesmo. Mas você fez o que devia ser feito e não há hora melhor do que a hora em que isso acontece. Sei que está vivendo agora a lacuna do outro. Sei que está vivendo da espera, dos passos que não podes dar e ai volto a dizer, o nosso mal é a impotência. Mas será que você é ou está tão impotente assim? Essa história é sua, tão apenas sua e de mais ninguém. Por um brilho do destino ela foi dividida comigo, assim como algumas minhas que dividi anos mais tarde, inclusive com você e outros amigos. Então, no silêncio um tanto não querendo silenciado de um bom amigo, não se conforme mesmo. Chore, questione, se ache um otário, se arrependa, sinta tudo isso agora, pois eu sei que lá na frente, num tempo que não tenho como dizer qual é, tudo isso vai passar e você vai se orgulhar por você mesmo, sem que ninguém tenha que fazer isso por ti. Tenho a certeza que meu amigo, e essa é uma das razões pelas quais o escolhi como meu amado amigo, vai me dizer que fez o certo e que faria novamente e novamente. E que espero ver repetidas outras vezes para poder dizer-te: "bravo!". Não sei o que você acha disso tudo. Contar um sonho é proibido e nisso o meu pai tem razão: "há coisas da gente que ninguém deve saber", e se segui essa regra imagine que há muitas coisas sobre mim que ninguém sabe. Consegue imaginar coisas sobre mim que ainda não te contei? Bom, muitas delas já até esqueci, o caminho para se chegar num verdadeiro amor é longo demais, e prefiro que seja assim. Espero que o seu seja mais breve como acredito que seja. E que seu coração esteja repleto de amor, de cuidados, de histórias, em fim, de tudo o que nos prepara para quando um amor chega. Aproveite o amor quando ele chegar, mas aproveite sobretudo o caminho que o levará, o que você escolher, até ele. Haja o que houver, eu estou aqui.
Com amor,
Clau...

3.1.07

O Ônibus Amarelo

Ainda pude ver o ônibus amarelo da passarela. Acenei um “até logo” sem que pudesse me ver. Certo seria gritar para que pudesse me ouvir. Certo seria ter um abridor de latas gigante e assim rasgar o teto do ônibus para dizer a saudade que já existia naqueles poucos momentos. E assim a presença foi virando lembrança. Lembrança de gosto gostoso de saliva. Lembrança de duas sombras idênticas, que caminham lado a lado, quase como se fugissem do mesmo ventre.
E um a um, os homens e mulheres desse lado garoado, reverenciavam o ônibus amarelo. Há nele a cura para males ditos como incuráveis. Sobre aquelas rodas, para além das coisas cinzas, o sonho já muito sonhado, teve de partir para o seu mundo ensolarado. Como dizer de sonhos, não se pode sonhar se o sonho está ali dividindo o mesmo travesseiro. Não há sonho quando se abraça o sonho, quando se pode olhar dentro dos seus olhos e ver a paz.
E um coração tranqüilo, que ama na mesma mão, bate com saudade, mas bate feliz ao saber que um dia o ônibus amarelo irá voltar. Nesse dia, pobres imundos das coisas cinzas irão reverenciar novamente aqueles momentos e quem sabe, não apenas sonhar.