27.11.06

Marianne

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Quando ele se lembrou de onde viera, daquele lugar desordenado, de pessoas na rua, de ruas imundas, de gritos desesperados, ele ainda assim sentiu falta dos dias incríveis em que Marianne o fazia um verdadeiro herói. A chuva que caia, e da qual ele inutilmente se esquivava era da mesma sutileza, de mesma temperatura, cheiro e gosto do temporal que o abateu na tarde de domingo em que Marianne partiu no comboio amarelo. Não entendeu muito bem na época. Tudo aconteceu como uma mentira repentina. Como aqueles pesadelos que o assaltavam no meio das noites ou como aquelas provocações falsas dos primos mais velhos. Mas o comboio amarelo existiu e no domingo de Páscoa levou Marianne. Alguns acharam que havia sido o melhor pra ela. Lá estaria protegida. Mas ele sabia que quase todos, a grande maioria inúteis egoístas, achavam que assim estariam protegidos de pessoas como a doce Marianne. Os gritos de Dona Dida podiam ser ouvidos ao longe, no passar dos anos. O desespero de Seu Antônio era sua pena de morte. Quando o comboio amarelo apontou na esquina, ele sabia que a levariam e nunca mais tornariam a se ver. Ela era o que todos queriam ser e por isso a culpavam. Pra não carregar tal culpa, em galopantes doses de desespero, ela tentou nas dores se tornar como eles. E depois de muitas falhas, na conformidade da exclusão, Marianne sentia-se feliz e livre naqueles dias, pois havia encontrado nele a razão para ser quem era. Era tarde demais. Ela estava mergulhada no seu destino. Percebera então, e talvez por isso não tentou fugir, que tudo fora escrito para ser daquele jeito, num suspiro lento, numa levada de vento de uma tarde de domingo de Páscoa. Ele chorava sempre, mas naquele dia ele chorou a dor de perder um amor. E mesmo não sendo a morte, ainda fosse pois a impressão que tinha é que até a morte era mais justa que aquilo, ele estava perdendo um amor e nada poderia fazer para deter. E quando ela entrou no caminhão, mas três outros assustados e talvez tão doces e amaldiçoados como Marianne, estavam ali com bolsas repletas de piedade alheia, cheias de ódios dos outros. Em poucos segundos aquela rua maldita estava livre do mal da doce Marianne. Em poucos segundos ele perdera o amor de sua vida. O amor que a vida tão cuidadosamente guardou para ele. Aquela que o amava exatamente como ele a amava. Nem menos e nem mais. Marianne se foi e ele ganhou o vazio e a dor de uma ausência. O mundo ficou mais triste sem o brilho do espetáculo de tal amor.

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