A cidade já estava longe quando ele percebeu que não sabia das razões daquela fuga. A certeza que tinha era que precisava se afastar, correr, fugir de feras ainda que imagináveis e incompreensíveis. E já cansado de lutar e de procurar por respostas fez como os pássaros que dormem planando nas correntes de ar: se deixou levar rumo ao desconhecido e esperar que suas respostas, tão aflitivas, se tornassem algo vivo, pulsante, onde ele pudesse se agarrar e despejar todos os seus sonhos e sua esperança.
Mudaram as paisagens, as dores não. Inventou de brincar com palavras, com a quilometragem, de cidade em cidade, foi criando e dando forma à essa necessidade desconhecida e tão intima. Brincou que vivia em filmes de terror, que corria de zumbis, que se protegia de algo realmente assustador e que o colocava em perigo. Fantasiou ser príncipe torto de pequenos reinados, que era justo e honesto e ainda assim não era feliz. Ele não queria coroas, sobrevidas, guarda-chuvas ou relíquias. Não queria tarde no shopping, fotos de viagens pra mostrar para os amigos no almoço de domingo. Não queria mais camisas, o contrário. Como já não pensava em salário queria ser um descamisado de peito aberto, de alma vibrante, disposto a amar e retribuir esse ato tão reprimido.
Medo? Mede de quê? Eis que as perguntas lhe martelavam nas paredes úmidas daquela casa velha que ele abandonou pra viver na casa dos outros, pra compartilhar a vida do outro. Não havia zumbis, nem monstros, nem dragões, casamentos mal arranjados ou obrigações que pudessem justificar aquele sentimento.
Então lembrou do pássaro planando, do céu, da liberdade e se permitiu brincar e fantasiar e correr e ser criança e o medo passou. E quando olhou para trás os prédios já estavam longe, era só o azul sem nuvens. Entrou numa corrente e voou para o seu destino sem questionar, sem deixar que o raciocínio pudesse interromper o caminho traçado em linhas invisíveis de vento.
E quando se deu conta, homem de medos, ainda que convivesse com eles, estava compartilhando seu destino. O olhar familiar lhe abrigou, lhe fez lembrar de músicas antigas e querer que aquele colchão no chão estivesse sempre ali pra ele. Aquele momento fazia sentido. O ato irracional dava razão para a estrada, para as idas e vindas, os términos, as lágrimas, as dores, as fantasias, a solidão. E então não se sentiu só. Só queria aproveitar aquelas preciosidades, dessas magias que fingiu não conhecer pra não sofrer.
Ele não sofre mais. Vai voltar pra estrada. Homem diferente, vai fazer o caminho de volta. E quando ver o primeiro topo do primeiro prédio vai sorrir e talvez no letreiro da congestionada via esteja escrito: “você precisa ter alguém pra cuidar”.
- Eu sei. Eu já sei.
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