20.2.07

Do lado de fora

Ninguém entende quando conto essa historinha. É terrível perceber que não sou o que os outros me convenceram que eu era. O mais terrível que me convenceram com a minha ajuda, com a minha patética contribuição apoiada por medos que explico com a historinha. Era Natal. Acho que 1986, lembro que meu irmão era ainda um embrulho chorão e com cara de joelho, então só pode ser em 1986. Passávamos o Natal na casa da tia “rica”, que tinha a maior casa, o maior quintal para que eu e meus trezentos primos pudéssemos brincar. Aquela grande casa tinha quintal na frente, quintal nos fundos, quintal embaixo. Tinha até uma casa na parte de trás. Um quarto e cozinha bem parecido com o que morava na época com os meus pais. Os filhos dessa minha tia tinham os brinquedos que sonhava ter, então ir na casa dela, seja no Natal seja em qualquer dia do ano, era como ir na Terra do Nunca. Espaço pra correr, brinquedos pra brincar, outras crianças dividindo a infância comigo. Essa historinha não é uma lamentação sobre o que eu não podia ter na época. Não é uma daquelas histórias que a gente guarda pra mais tarde jogar na cara de um filho mimado mostrando pra ele o quanto poderia ser difícil a vida dele. Minha vida não foi difícil. Não ter o gato guerreiro do He-Man ou o Pogoboll não era nenhuma dificuldade pra mim, não serei hipócrita. Estávamos brincando no imenso quintal que ficava entre os fundos da casa da frente e a frente da casa dos fundos quando os adultos chegaram. Chegaram correndo e entraram no pequeno quarto e cozinha. Eu nem teria percebido se eles não tivessem deixado entrar com eles todos os meus primos pequenos como eu. Aquele quintal nunca foi tão grande. Só havia eu ali, sem saber se era do lado de dentro ou do lado de fora. Bati que queria entrar e eles riam. Na porta da cozinha da casa grande as mulheres riam limpando as mãos nos aventais. Lá dentro, risadas de crianças misturadas e risadas de homens misturadas com barulhos de ferramentas. Eu tinha cinco anos e queria entrar. Eu não tinha idade pra entender daquelas risadas, o por que de me deixarem do lado de fora, mas entendia perfeitamente que haviam deixado entrar todas as crianças. Comecei a chorar e então eles riam mais ainda. Não estava curioso, não estava irritado com os risos, estava apenas me sentindo excluído, me sentindo pela primeira vez diferente dos outros. Mas antes que o meu choro pudesse se transformar num desespero total a porta se abriu, as crianças saíram correndo, meus tios e primos mais velhos também, até que sai meu pai com uma pequena bicicletinha. Não tenho como dizer como ela era, talvez azul e branca com rodinhas, realmente não lembro. Em fim, o primo que não tinha bicicleta agora tinha a sua. Logo eu estava cruzando todos os quintais com minha bicicleta e esqueci o que tinha acontecido. Achei que havia. Não sei como era a bicicletinha mas sempre me lembro, as pessoas sempre me fazem lembrar daquele dia. Quando contei para um amigo, a quem confiava muito, sobre essa história, ele simplesmente disse que a gente lembra daquilo que queremos lembrar. Mais ou menos como se lembrar apenas das vezes em que apanhamos, que sofremos, que doeu, que foram injustos com a gente. Quis dizer que nos lembramos disso porque nos favorece e que ao lembrar dessa história eu estava ferindo a boa intenção dos meus pais naquele dia. Traduzindo: ele me chamou de filho ingrato. Entendo perfeitamente a necessidade dos meus pais em me fazerem surpresa naquele dia. Até entendo que deixaram as outras crianças entrarem, de fato não teria chamado a minha atenção se só os adultos tivessem entrado com uma caixa do tamanho da bicicleta que eu ainda não tinha. Foi a forma que eles encontraram, ou melhor, que eles escolheram de presentear naquele Natal. E como entendo, sempre esperei que entendessem também o que tal episodio causou. Gostaria muito que entendessem que não consegui esquecer e não foi pra jogar na cara ou arrancar alguma piedade de alguém. Na verdade eu não sabia porque me lembrava dessa história todos esses anos, e hoje acho que aprendi, ou entendi muitas das coisas que aconteceram entres esses 21 anos. A dor da exclusão, talvez germinada numa coisa tola de surpresa de Natal, ficou latente e se tornou o grande Bicho Papão. Não se diz o que uma pessoa sente, não se diz o que uma pessoa deve fazer com suas histórias. As vezes elas se repetem com novos personagens, com as mesmas “boas intenções”, com um pouco de falta de consideração ou de atenção. As vezes se exclui sem saber que está excluindo, sem saber a dor que isso causa no outro. Pessoas amigas, pessoas queridas, pessoas que amamos e nos amam, percebem onde dói a dor no outro e a evita. É por isso que elas se amam, entre as coisas boas todas, está a de amenizar as ruins. Levei muito tempo acreditando que eu estava errado. Passei muito tempo ajudando os outros a me convencerem que minha forma de me doar, que o meu jeito de amar estava errado. E hoje, exatamente hoje, uma única pessoa, que está a quilômetros de distância de mim, consegue entender se não o por que dói, compreende pelo menos que dói, e isso basta pra me poupar e me proteger como fazem as pessoas que nos amam. Não vou declaram guerra dessa vez. Meu país declarou paz e vai continuar assim. Pedi muitas desculpas por coisas que não fiz só porque me convenciam que tinha feito. Não vou mais entrar na onda do descontrolado que perde a razão porque demonstra o que sente. Aprendi uma lição nesse carnaval. O mundo é muito grande. Hoje não preciso mais chorar na porta, do lado de fora. Existem inúmeras portas, se não me abre essa, pouco importa se o que você tem ai dentro é uma bicicleta, eu vou procurar outra. Não se deixa um amado do lado de fora, nunca. E sem piedade, e sem revolta, e com certa magoa, e agora com certa esperança. Mais do que nunca contando dias. E antes que me ligue (se ligar) eu sei do fundo do meu coração que não foi de propósito, mas dói mesmo assim.

2 comentários:

Anônimo disse...

Nunca vou deixar você do lado de fora. Beijos, Guido.

Anônimo disse...

Mais um porta se abrindo!!!
;)