13.2.07

O regime semi-aberto de Pano de Chão

Quando apareceu na rua, o país ainda acordava sem saber quem era o pequeno João Hélio. Os dias pareciam estranhamente calmos, a brutalidade está sempre lá, no outro. O desespero, a dor, a perda nos comove e só. Mas quando Pano de Chão decidiu que a rua Alemanha seria o seu próximo lar, talvez intuísse que poderia encontrar ali um canto para repousar seu sofrimento. O vi apanhando de um vizinho, desconhecido pra mim como a maioria, ao dormir encolhido na frente de seu portão. Não reagi. Não enfrentei e confesso o quanto sou covarde de peitar essas pessoas. Então escrevi aquele texto de dias atrás. E quando escrevi eu não imaginava os rumos da minha história com Pano de Chão. Prefiro escrever isso agora do que esperar para descrever, a quem sabe daqui quarenta anos, como lembranças da juventude em Diadema. Como recordações dos meus queridos pais, como os que nomeiam ruas ou inauguram bustos em praças. Se Pano de Chão escolheu nossa rua entre tantas outras é porque certamente algo ele queria e algo ele podia nos dar em troca por isso. A vida passa com poucos brilhos. As pessoas vão se tornando repetições de mesmices, não se pode esperar mais de ninguém, muito menos de si mesmo, vide a minha atitude ou melhor, não-atitude, com o vizinho infeliz. Meus pais sempre me surpreendem com uma carta mágica na manga. Generoso, meu pai, colocou um punhado de ração do Paco e da Lara, na calçada. No dia seguinte um pouco de água num pote de margarina, e no outro dia, para desespero do casal de salsichas, Pano de Cão dormia na garagem. É o limite, mas é o melhor do que qualquer outra pessoa da rua que ou distribui pancada para o cachorro ou simplesmente ignora a sua presença. Brincamos que ele está em regime semi-aberto, dorme durante a noite na garagem e passa o dia na rua com suas estripulias caninas. E desde aquele momento, chorando ao se proteger do temporal que caía, quando meu pai entendeu o seu pedido, não deixe me molhar aqui, sabíamos que algo mudaria. Pode não ser ideal, mas basta para aliviar o peso do bonzinho Pano de Chão e por ter feito com que eu não esquecesse quem são os meus pais.

Um comentário:

Anônimo disse...

Mais um pouco e ele se torna da família...rs...

(Ficou melhor assim o tamanho da letra)

;)