Dois anos atrás percebi que havia ficado invisível. Já havia tido provas da minha insignificância em outros momentos, mas só me dei conta quando aquele mendigo sujo, tão mais invisível à maioria de nós, esmolou os dois que estavam à minha esquerda e àquela bonita jovem à minha direita no ponto de ônibus. Nenhum gesto, palavra ou olhar pedante ou humilhado para mim. Portou-se como se ali eu não estivesse. E naquela tarde senti a dor da indiferença. Minha mãe tinha obsessão por desgraça. Intuía, ainda moça, que sua vida seria sucessivas desventuras trágicas. E antes de morrer num incêndio na fábrica de calçados onde trabalhava, perdeu os pais num acidente de trem, o marido, meu pai, vitima de assalto, meu irmão mais velho, atingido por bala perdida e minha irmã mais nova afogada na enchente de verão. Morreu num incêndio e restou eu. Morreu acreditando ter levado consigo a desgraceira toda. A maldição que arrastara consigo todos aqueles anos, vitimando os que viviam a sua volta, até por fim a si mesma. Pensei, ileso à toda a sina familiar, que fosse um destes adotados. Mas bastou o mendigo ignorar os meus trinta centavos e me fazer lembrar, até então esquecidas, situações em que não poderia nem ter existido e elas teriam se passado exatamente como recordava. Os dias seguintes foram de intensos testes. O traste maltrapilho poderia simplesmente não ter ido com a minha fuça. Pode ter me achado tão ou mais esfarrapado que ele. Na dúvida me pus a testar minha existência. Ônibus sem passar na catraca, cinema sem pagar. Eu não era impedido, não era notado. Não era paquerado ou desrespeitado. Não era nada. Deduzi, por fim, que somos o que somos para os outros. A medida que perdi minha família e que não tive capacidade de criar novos laços, deixei de existir. O odiado existe enquanto existir ódio no outro. O enamorado vai existir enquanto houver amor por ele em sua amada. O pacto cruel da existência. Viver nada mais é que pactuar todo o tempo com o máximo de pessoas que couber numa agenda telefônica. Estabelecer vínculos de sentimentos, de necessidade, de desejos. Foi assim que fiquei invisível. Assim mamãe deixara a minha cota de desgraça e um pouco também de suas manias obsessivas. Mas nunca compartilhei por seu gosto pelas histórias de finais nada felizes. Confesso que meu vicio é bem mais complicado de se compreender. Tenho tara incansável por homem mijando. Coisa de moleque, de espreitar o irmão, os garotos no colégio, qualquer bêbado de rua e seu glorioso jato amarelo. Quantas vezes, nas viagens nos coletivos, não virei a cabeça pra ver, ainda que de relance, o belo de um mijão. Mas, até a desgraça da invisibilidade, nunca pude chegar perto tão quanto gostaria. Me aventurei em imundos sanitários públicos, mas o medo me impedia e tornava o desejo ainda mais desejoso. E não havia pretensões maiores a não ser contemplar aquela mijada, ouvir aquele barulho de mijo correndo na água, quando vaso sanitário ou o ruído de água batendo e espirrando no metal naqueles grandes mictorios, meu prateado paraíso. A invisibilidade, a indiferença deles todos me deu esse prazer de assistir de perto, de muito perto ao ponto de sentir ácidos odores. Uns amarelos, outros alaranjados, alguns bem limpinhos como de bebês e ainda os com sangue, denunciando alguns excessos. Contemplei abraçado por trás, fungando em pescoços que se quer imaginam que outro homem os roçou. Muitas vezes agachado, encostando a cabeça na cintura, abraçando grossas coxas, ouvindo pequenos gemidos. Sim, existem alguns que gemem como se estivessem mergulhados no êxtase do gozo dentro de suas comportadas esposas. A maldição de mamãe então não era tão ruim assim. Ser ignorado era um prazer que me proporcionava compartilhar das melhores e variadas mijadas. Mas foi quando aquele homem forte, com mamilos endurecidos e pele morena e brilhante de suor, entrou no banheiro que senti que ali escondia o maior de todos os prêmios. Se colocou na frente do mictorio com seu enorme membro pra fora. Só, os dois naquele sanitário que cheirava a merda curtida e papel higiênico molhado. Fiquei ao seu lado e o belo homem forte, dono de um membro repleto de saltadas veias parecia esperar por algo para despejar seu dourado líquido. Foi quando deu-me uma olhadela com canto de olho e sorriu. Com a mão desocupada, procurou pela minha e a colocou segurando aquele amolecido e escuro músculo. E então pude sentir em fim o líquido passando pelo estreito canal, vibrando a quente pele. Quando terminou, deixando cair a última gota, eu segurava algo duro, rijo, que já não necessitava do apoio de minha mão para manter-se firme. Com um só empurrão me jogou para dentro da fedorenta cabine sussurrando que havia guardado o bastante para me inundar. Segurou-me forte, com estocadas precisas, me banhando com todos os seus líquidos. Disse um inusitado “amo você”, e largou meu cansado corpo ali. Cansado e satisfeito para espanto e indignação de todos. “Sua bicha imunda!”, alguém gritou. Eles me viam. Estavam horrorizados comigo. Eu gargalhava. Eu apenas gargalhava.
10.2.07
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Um comentário:
Nossa Cláudio!!!
Mandou bem, e se era o que queria, conseguiu - chocar!!!
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