27.11.06

Marianne

(...)

Quando ele se lembrou de onde viera, daquele lugar desordenado, de pessoas na rua, de ruas imundas, de gritos desesperados, ele ainda assim sentiu falta dos dias incríveis em que Marianne o fazia um verdadeiro herói. A chuva que caia, e da qual ele inutilmente se esquivava era da mesma sutileza, de mesma temperatura, cheiro e gosto do temporal que o abateu na tarde de domingo em que Marianne partiu no comboio amarelo. Não entendeu muito bem na época. Tudo aconteceu como uma mentira repentina. Como aqueles pesadelos que o assaltavam no meio das noites ou como aquelas provocações falsas dos primos mais velhos. Mas o comboio amarelo existiu e no domingo de Páscoa levou Marianne. Alguns acharam que havia sido o melhor pra ela. Lá estaria protegida. Mas ele sabia que quase todos, a grande maioria inúteis egoístas, achavam que assim estariam protegidos de pessoas como a doce Marianne. Os gritos de Dona Dida podiam ser ouvidos ao longe, no passar dos anos. O desespero de Seu Antônio era sua pena de morte. Quando o comboio amarelo apontou na esquina, ele sabia que a levariam e nunca mais tornariam a se ver. Ela era o que todos queriam ser e por isso a culpavam. Pra não carregar tal culpa, em galopantes doses de desespero, ela tentou nas dores se tornar como eles. E depois de muitas falhas, na conformidade da exclusão, Marianne sentia-se feliz e livre naqueles dias, pois havia encontrado nele a razão para ser quem era. Era tarde demais. Ela estava mergulhada no seu destino. Percebera então, e talvez por isso não tentou fugir, que tudo fora escrito para ser daquele jeito, num suspiro lento, numa levada de vento de uma tarde de domingo de Páscoa. Ele chorava sempre, mas naquele dia ele chorou a dor de perder um amor. E mesmo não sendo a morte, ainda fosse pois a impressão que tinha é que até a morte era mais justa que aquilo, ele estava perdendo um amor e nada poderia fazer para deter. E quando ela entrou no caminhão, mas três outros assustados e talvez tão doces e amaldiçoados como Marianne, estavam ali com bolsas repletas de piedade alheia, cheias de ódios dos outros. Em poucos segundos aquela rua maldita estava livre do mal da doce Marianne. Em poucos segundos ele perdera o amor de sua vida. O amor que a vida tão cuidadosamente guardou para ele. Aquela que o amava exatamente como ele a amava. Nem menos e nem mais. Marianne se foi e ele ganhou o vazio e a dor de uma ausência. O mundo ficou mais triste sem o brilho do espetáculo de tal amor.

(...)

24.11.06

Sem doer

Fui andando. As pessoas já não me reconheciam. Era o sinal que aquele lugar familiar já não era mais a minha casa. Então onde é a minha casa agora? “Onde estão os seus sapatos” – disse certa vez. Borrei bastante o papel e na figura abstrata tentei ver o meu futuro. Se não há nuvens, céus limpos de primavera com jeito de verão, eu me imagino no borrão. Poderia gritar que meus desconhecidos não me ouviriam. A dor é sentida assim, no doer solitário, na falta de entendimento, na apatia dos outros. A indiferença um dia ainda me mata. Me chuta, me xingue, me bata, me perca! Me estremeça! Verei amor nas botinadas, verei calor no tapa na cara amarrada pelas coisas que deveriam ser e que não são. Quanta vergonha! Onde posso me esconder? Eu queria um canto aconchegante e promessas felizes. Frutas e suas mordidas. Esse prazer, essa dor, esse sentir seja como for. E fui andando, e olhares desprezíveis para asas a muito desprezadas. Listas de adeus, sentimentos soltos, pedaços perdidos, fatias de amores enrugados, como aquele menininho amarelo que passa horas brincando na água. Na lembrança triste da morte dos gafanhotos. Nas lágrimas infantis daquelas tardes. E fui andando sem olhar para trás. Uma jamanta do Caio pode me alcançar e ainda há tempo de tentar. Podemos ser, mas ser é muito pouco. Ser muitos são. Ser com você é mais divertido. Então volte. Estou caminhando e os indiferentes fingem que não estão me vendo. Mas eu estou aqui, passos quase perfeitos, seguindo até você. Seja lá, seja cá, ou acolá. Também posso te esperar. As cortinas vão se abrir e o sorriso preciso é o meu presente maior, da vida que dou, assim, sem dor.

23.11.06

Re-, -partir. Partir, repartir. Repartições.

Eu me desfaço de vícios, finjo que não ligo e ligo quando é madrugada. Eu caminho no corredor, arrebento em meus sonhos o traidor e me perco em séries de TV. Examino de longe o coração que sofre aqui dentro. Ensaio apelos, palavras em desejos e presentes de final de ano. Me embrulho em cobertas em dias quentes pra sentir o sangue ferver. Me vejo no arco, no bonde, na rima e em tudo o que não estou. Venho e vou sem deixar rastros ou marcas bem marcadas de passos leves e sutis. Leio o que já foi lido, me perco no que não existe, grito de raiva, odeio e amo num segundo. Me desculpo, me engulo e vomito na janela que não fecho mais. Marco baladas imaginárias, danço em festas de rua no mundo que me gerou. Já como de tudo, respeito placas e suspiros aliviados. Me vejo tão longe, me perco aqui perto, invento novas rotas, corações saltitantes, promessas feitas, esperas doloridas e sorrisos de felicidade. Apelo de amor, conseqüência de uma dor linda, cor azul, verde quando vem de lá, que me alfineta, sobretudo na testa, em festas, em lugares cheios, em lugares cheios de ausências. Eu me perco nos meus dias, no sangue que ferve, na promessa que faço, na espera selada, no sonho bom dos dias eternos.

19.11.06

Vendaval

Ando inclinando para milagres. Escolho um santo, São Paulo, em fim, e espero. Talvez São Sebastião seja um santo de sonhos lindos e proibidos pra mim. Não sei se tenho a consciência doce ou se a visão está distorcida. Hoje não vou dormir com a janela aberta, o vendaval chegou. Não vou sair do meu sono tumultuado para visitar quem não me vê. Cansei de acordar assustado, então devo me cansar antes de dormir e acordar com o cabelo amassado, meias no pé, sem sonhos, sem pesadelos. Não trazem aquele comprimido de ânimo que tanto anseio. Todos esperam. Eu olho a camisa colorida que embalei o meu coração doente naquela noite e o que fazer agora? Continuar empilhando livros em busca de soluções para as dúvidas? A sensação é que o trem partiu e mais uma vez me esqueceram. Querido L, onde estás é frio, não pode zangar comigo do lado de lá. Então o Querido E, que também está longe, na proximidade quente do trópico, não mais olha como antes. Passou como lamento e me entregou ao Querido R, o mais perto e o mais longe dos Queridos. Ele guarda algo que é meu e que não terei mais. Ele brinca e posso apenas me orgulhar daquele ato de um ano atrás. Então resta o Querido J, sem saber ao certo o que fizemos um pelo outro. Na passagem branca dos dias passados, nós nos ajudamos. E agora estou aqui aguardando o chamado, empilhando livros, fechando e abrindo a janela. Vestindo meias pra lembrar da infância, desejando milagres, querendo ser feliz sem ter que jamais dizer “até logo”. Então comece com o violino, vamos fazer aquela cena pateticamente dramática que repete todas as noites em meus pesadelos. No desespero da descoberta, no amor destruído. Na roupa que rasgam a procura de provas. No sangue que escorre do nariz. Do meu olhar de desistência, no meu olhar de perda naquele olhar de culpa do outro que permitiu que a dor se instalasse. É uma loucura! Preciso dormir. Preciso daquele comprimido, será que não percebem? Preciso de respostas, preciso que veja como vejo. Não quero mais escolher sozinho. São Paulo vai interceder por mim e pode ser que ele me prenda aos seus pés. O vendaval passou.

18.11.06

Sobre meias furadas e mariposas

Já não lembro muito do lugar onde, nos meus pequenos dias, eu te vi. Era uma noite quente. Postes iluminavam a rua e centenas de mariposas disputavam a luz. Não sei porque agora penso tanto naquela noite. A sensação era muito familiar. Como se eu tivesse que prestar muita atenção, pois um dia, provavelmente agora, eu saberia de todo aquele mistério. De alguma forma eu te soube ali. Sei porque ecoou dentro de mim todos esses anos as tais luzes amarelas. Eram elas me guiando até você. Eu me tornei a mariposa procurando por sua luz. Não cansei nem em dias muitos frios. Não desisti sem nem saber que era permitido desistir. Então juntei algumas armas para sobreviver. As luzes amarelas, essa coisa doida de escrever, ouvir repetidas vezes “Calling You”, olhar o mundo pela janela, brincar na chuva, colecionar histórias, recortes de jornais, retalhos de pessoas, vidas contadas em roteiros mal escritos. Tudo aconteceu, nas curvas tortas, nas retas longas, nos retratos que comprovam, nos pedaços perdidos, em todos os dias vividos, para que eu pudesse ter essa doce consciência. E o meu desejo é que não apenas me tenha, mas tenha esse caminho, que saiba desses caminhos. Que conheça os lugares que me levaram até você. E se cheguei com a “meia furada” é porque sabíamos que só você a poderia costurar. Pode pegar em minha mão. Será eu ali, do outro lado do palco, em meio a tantos, sorrindo orgulhoso. Eu vou até lá com você. Eu vou caminhar contigo nos seus sonhos. Então não tenha medo, pois já que conhece os meus, já que conhece a minha dor, sabe que podemos dividi-los juntos. Durma em paz, vou ficar aqui velando o teu sono e quando o meu chegar, deixo apenas a luz amarela a nos iluminar.

16.11.06

Uma semana de atraso

Não sei. Não sei o que escrever. O dia até que anda passando rápido com esse horário de verão, mas são viradas de dias tão repetidos que parece que não estou saindo do lugar. É o mesmo frio gelado, a mesma porta para abrir, o mesmo bom dia, a cadeira, o vazio, o silêncio, as dúvidas. Vou pensando coisas, vou querendo dizer coisas e então me censuro, aborto, me calo, deixo pra lá. É apenas uma loucura e todos dizem que tenho que relaxar. Ouço isso com leve riso, olho pro lado e o silêncio está ali me espreitando, o silêncio preenchendo o vazio ou o vazio revelando o imenso silêncio desses dias. Viro o olho pra lá, viro o olho pra cá. Não! Não quero abrir a cortina. É a mesma árvore a cinco anos. A mesma rua, a mesma cor de céu, os mesmos carros e até as mesmas pessoas. A persiana cinza confere um tom ainda mais cinza para esses dias cinza de espera. Não que seja de todo ruim esperar, mas para a minha ansiedade, a espera é como um veneno que me consome pouco a pouco. E tentam aliviar a dor da morte lenta com otimismo, dizendo que tudo vai dar certo, que é o momento, que basta relaxar. Ok! Vocês venceram, não vou duvidar tanto de mim agora. Apesar que ontem a noite me deu um frio na barriga diferente. Aquela velha coisa de se projetar no futuro, em outro lugar que não aquele confortável em que se está e então me vi só, querendo ligar para alguém de voz confiável, de voz familiar e abraço sincero. Me vejo entre medos e ansiedades, uma combinação feroz que me joga contra a parede ainda que estático permaneça. Então posso olhar o relógio e sorrir porque é uma hora a menos. Posso sorrir com o fim do filme, passou mais duas horas. E outro sorriso porque passaram alguns minutos e estou mais próximo do reencontro do que da nossa última despedida. Depois de escrever essas palavras sem sentindo que querem desesperadamente ser compreendidas, eu me divido entre aquele que quer apagar tudo, fingir que nada está acontecendo e entre um outro que quer erguer a espada no largo e berrar para que ouçam, os que estão perto e ele que está longe, que tudo é difícil mas que preciso de compreensão. Que preciso de palavras sinceras e que não jogo mais tão bem com as mentiras. Descobri que não são promessas o que quero dele, quero apenas sinceridade para poder determinar os meus passos. Quero o mesmo que muita gente nessa rua patética tem, a convivência declarada num anel, nos anos que orgulhosamente contam, na cumplicidade sentida mesmo que atrás da persiana cinza. É apenas isso que quero, ser feliz, poder entregar o meu coração para alguém sem medos, sem essa mania suicida de achar que ele vai destroçá-lo e que o devolverá em mil pedaços. Ele é diferente e por mais que o mundo diga que não, que as experiências me digam que é inútil prever os futuros dias, no máximo se preparar para o pior, eu sei que ele é diferente. Sei por que o amo. Sei por que ele mostrou que tenho a capacidade de amar alguém e que se ele me amar também, poderemos em fim dar as mãos e viver o que sempre sonhamos naqueles dias ruins e rotineiros em que apenas nos sabíamos.

7.11.06

Eu sei de tudo.

Pediram para que um jovem rapaz escrevesse uma mensagem que pudesse ser entendida por todos os povos do planeta. E depois de diversos rascunhos, estrofes, letras, em fim ele escreveu a mensagem de amor que pôde ser facilmente interpretada ao redor do mundo.

Mal sabia aquele jovem que estaria, atravessando canais temporais e escrevendo as minhas palavras para ti. Eu sei mais do que pensas. Sei mais dos nossos mistérios e da mágica que nos une. Sempre soube de você. Eu sempre soube que tudo o que você precisa é amor.

Então abra a janela e tente me ver lá fora acenando. Estou um pouco cansado, consegue ver? É que andei muito pra poder chegar a tempo, mesmo que digam que nunca é tarde demais para a chegada de um amor. Vim até aqui pra te trazer esse bilhete que nos dará o direito a ir até Plutão. Eu vim te ver porque tudo o que você precisa é de amor.

Eu sei que houve feridas, que houve aqueles que lhe devolveram o seu coração desprezado. Era apenas uma ajudinha, uma mãozinha, já que eu estava longe de ti. Houve uma razão para nossas dores, e você deve saber disso. Saiba que fui me perdendo pelo caminho e que toda vez que me faziam crer que o havia encontrado, eu olhava a estrela mais brilhante de todo o céu, e um suspiro cafona denunciava que era a janela errada.

Tem coisas que a gente não diz. Outras a gente não expõem. Encontrei uma porção de orgulhosos no caminho que me trouxe até aqui. Mas eu me preparei tanto, olha essa roupa nova que comprei, não é bonita? Devo me calar agora que o encontrei? Posso parecer um bobo com caixinhas de madeira na mão, mas se apaixonar é se tornar um pouco bobo, então tudo bem, podem me chamar de bobo.

Abra mais um pouco a janela, tudo o que você precisa é amor. E você acredita que coube tudo dentro dessas caixinhas? Não tenho moedas. Não tenho a beleza dos belos. Não tenho impérios, nem um mundo de livros. Tenho poucos cabelos, os braços finos e um coração que venho humildemente lhe entregar porque foste seu desde sempre.

Consegue ver o meu mundo tremulando as bandeiras da alegria? Eles comemoram o momento tão esperado. Hoje os refletores estão em ti porque tudo o que você precisa é amor e está aqui o coração que bate pra te fazer feliz.

Esqueça o que passou. Era tudo história velha e repetida. Basta abrir a janela e pegar o que é teu. Eu cuidei bem dele mesmo não sabendo da beleza do vermelhinho dos seus olhos, dos dentes separadinhos, do exagero no “s”, do silêncio e da facilidade de me fazer sorrir. Eu cuidei do amor que eu tinha para dar para alguém mesmo não sabendo que era você, e de certo modo, sempre sendo você.

Tudo o que você precisa é amor. Atravessei os canais do tempo um dia e sussurrei para o rapaz que ficou famoso, “All You Need is Love”.

6.11.06

Jujubas

Eram três as opções. Eram três as possibilidades que havia imaginado. Não que tivesse controle total sobre elas, não tinha mesmo, mas roia as unhas aflito pois sabia que as dúvidas não haviam sido tão inconscientes assim. Era um estranho vicio de plantar, no pequeno vaso chamado futuro, as situações que seguiriam. Inventava situações diversas, e ouviu de certa velha certa vez que certas invenções eram perigosas. Desejar o bom caminho abre para ti o próprio caminho, reforça o querer, como gama concentrada de energia positiva, que acumulada e saída direto do coração desejoso, faz com que a possibilidade do que se quer acontecer se torne infinitamente maior. Mas sabendo de seu vicio, a certa velha sempre certa alertou do perigo que corria. Ao criar negativas projeções futuras, ele se distanciava ainda mais do seu querer. A velha até entendia, é um mecanismo arteiro, ele havia sido programado para se defender e criar certas histórias, maluquices de sua cabeça, a possibilidade escura. Era como um teste, um vestibular para o sofrimento que viria ali na frente. Desse modo, ainda que quisesse arrancar os cabelos e ver em suas finas raízes todos esses maus pensamentos, ele só queria não sofrer e para isso o seu corpo se manifestaria de todas as formas. A velha ainda disse “abrace a sua loucura antes que seja tarde demais”.
Pensou em escrever um livro. Passaria melhor o tempo e afastaria os maus e quaisquer pensamento traiçoeiro. Impossível, era superficial demais para tal, pensou. Sentia a testa quente, contorceu na cama, uma meia volta para a direita outra meia volta para esquerda. Olhou para o telefone, deve ser tarde. Fosse cedo, telefone não há. Não existe outra forma. Revirou mais uma vez e pediu calma. Olhou o teto e nada viu, apenas buracos onde prometeram um dia que seria o repouso de belos balões feitos com guardanapos. A mão acariciava o lado direito logo abaixo, tomado por medo acariciando a si mesmo. Como se sua mão pudesse entrar dentro de ti e embalar o órgão ferido. Foi quando lembrou de Caio quando este disse “feito febre, baixava às vezes nele aquela sensação de que nada daria jamais certo, que todo os esforços seriam para sempre inúteis, e coisa nenhuma de alguma forma se mais ficaria”.
Ele queria encontrar a velha e pedir conselhos. Queria que alguém sabiamente pudesse lhe dizer o que fazer. Mais sábio seria procurar uma vidente, cartomante ou qualquer pessoa que pudesse lhe dizer um simples sim ou um não ruidoso. Na verdade ele sabe que não precisa disso pra acomodar a cabeça no travesseiro, mas o encontro com a velha seria ideal. O pêlos duros no queixo pontudo da velha, que lhe pinicavam ao beijo, deixava a saudade confortante de dias não muito confortáveis. E que passado a maior dor já sentida, a dor de si em si, ele pensou que não mais haveria indecisões ou provas em sua vida. Não haveria medo depois de encarar a finitude dos dias. Errando nos cálculos, feliz como poucas vez sentira, gozando de dias lindos e perfeitos como passeio em jardim florido, ele não entendia a angústia que lhe apertava o peito e que fazia ter os tais pensamentos tão condenados pela velha. Lembrar da velha não bastava, queria tê-la, possuí-la. Arrancar a sua sabedoria, os seus segredos guardados no miúdo corpo. Ele queria ser a própria velha que tudo sabia sem nada saber. Ela havia vivido menos provações do que ele, já que viagens de navios não prova nada, pelo menos para ele. Mas havia uma coisa na tal velha, um sentido primitivo que o fazia querer ser menos complicado e viver como ela vivia.
Pensou nas poucas vezes em que amou e não foi amado. Pensou nas outras vezes em que o amaram e ele não amou. Toda a dor está ai, nesses desencontros. O fato é que ele amava, e nas ocasiões em que permitiu que isso acontecesse, o final não era o esperado, mesmo assim era o imaginado. Estaria então a velha certa? Estaria ele provocando em seu pensamento doentio a febre de futuros rompimentos? O fato é que ele assistiu a muitas novelas. Criado por mulheres novelescas, com quedas ao melodrama. E já moço, foi encontrar repouso no cinema, sim, já que novela era coisa menor. E viciado em histórias que não davam certo, emocionado com o que não foi, tornou-se cúmplice da infelicidade plástica de seus heróis. Admirador da triste beleza que a tristeza carrega. Naquela lágrima presa ao olho, na cafonice da partida, de um abandono, no sentimento destrutivo da auto-piedade, sim, pois ele se vira exatamente ali, projetado na tela. Vivendo aquele sofrimento atuado poupava-se de vivê-lo na carne. Estava poupado e pronto!
Mas era diferente, ele amava e ensinaram que amar é perigoso. Lembrou de Cecília, a bela menina que sofrera por ela anos antes, e pôde sentir sua dor. Sabia que só sentiria a dor de seus amados quando amasse de fato. Então já não havia como ter auto-piedade. Porque se não amara antes, como sofrer pelas vezes que amou e não foi amado? Sim, ele havia transformado paixões em amores, amizades fortes em amores, sentimentos belos em amores, mas amar, como estava amando naqueles dias, jamais.
Seria esse o medo? A velha sábia tinha previsto esse dia e antes de partir, ainda que com o olhar triste, o escolheu entre outros treze. Era a ele que ela daria o dom do amor e assim, todas as alegrias e dores que ele proporciona. “Tudo o que você vai fazer daqui para frente será por amor”, como dizer isso a uma criança da forma que deve ser dita? Ela arriscou em deixar-lhe sua herança. Ainda que tenha levado a sua sabedoria, ainda que não tenha deixado segredo algum, ela fizeste, com o coelhinho de cartolina nas mãos a previsão que agora, ele, revirando em lençóis verdes, conseguia entender.
Viver é desviar das dores ou viver é fazer o que a maioria não faz? Eram três jujubas. Três opções. Uma jujuba azul, uma jujuba vermelha e outra jujuba roxa. O homem olhava com extrema paciência. Com a perna cruzada, olhar sereno, fumando como fumam os atores de cinema, virando a cabeça pra fumaça sair de lado. Ele esperava paciente a decisão do escolhido da velha. Escolher nunca era algo fácil, não para ele. Escolher era sempre perder. Nunca se prendera ao que ganhava, havia mais valor o que perdia e talvez ai more o fetiche pelo sofrimento. Mas as três opções eram de outra espécie. Eram decisões que em partes, a não ser uma das jujubas, não cabia a ele. E que, por ter pensado demais, por talvez não ter se preparado como sugeriu a velha, haveria de passar pelo sofrimento de escolher a jujuba errada. Foste ele que imaginou, então que ele arcasse com o que viesse depois. O homem fumante pouco se importava, era apenas o mensageiro da cabeça descontrolada do outro. Eram três jujubas e apenas uma escolha.
“Vou dizer-te sem muita demora”, disse o homem, “na verdade refrescar seus próprios pensamentos, há de escolher e digo que tens 1/3 de chances de fazer a escolha certa, se é que nessa sua mente doente haja certo ou errado, e assim, sobra-lhe 2/3 de escolhas, que tenho para mim, como as erradas”. Aquilo não poderia estar acontecendo, ele só queria ser feliz, havia vivido tudo até ali por amor. Tudo bem, tudo bem não de forma consciente, ouviu aquilo da boca murcha de uma velha enrugada como frase qualquer sendo dita por quem já não é dono do raciocínio. Era o seu castigo, pois é muito fácil dizer que tudo sabia agora que tudo acontece, e como ele sempre se punira, era o que ele a si fazia naquele momento.
“Escolha uma e fiquem juntos. Escolha a outra e você desistirá. Por fim, escolha a última e ele o deixará. Simples. Três possibilidades. Três chances que você inventou. Agora viva uma delas”. Como saber?, ele pensou. Se tudo aquilo era invenção de sua cabeça, ele haveria de encontrar um modo de se enganar. Ele deve ter deixado alguma pista. A jujuba azul é anis e ele detesta o gosto do anis, porém azul é a sua cor favorita. Assim como o vermelho, cor querida, a jujuba deve ser morango, ou cereja ou framboesa e todas eram saborosas, mas nada igual como a de uva, a roxa.
Ele então chorou. “Não se desespere” confortou-lhe o homem. “Com não me revoltar com a crueldade de tal jogo! Como não me desesperar diante ti? Diante de mim? Eu estava tão cansado, havia provado o gosto amargo do futuro vazio, a beleza havia se perdido e quando eu permiti, quando encontrei o amor encontrado arrumaram uma maneira de destruir tudo! Não basta o que eu passei? Não basta o sofrimento daqueles dias? Não bastou aquilo tudo para me provar? Eu sai da roda! Sai dela! E pude em fim respirar e foi quando ele sentou do meu lado que eu senti o coração bater novamente. Eu sai da roda como vocês recomendaram! E agora tenho que escolher? Que fim injusto para um tolo apaixonado como eu”.
O silêncio do homem que já não fumava mais era o oceano, só que sem o chiado das ondas. Percebeu que não sairia dali sem fazer uma escolha. Seu Deus havia morrido a muito tempo e então prendeu-se nas palavras que ouvira no ônibus. Naquele reencontro inusitado, da voz que lhe dizia jamais ter sido esquecido quando parte da dor que lhe consome é ser esquecido. É nela, na certeza ainda que sem caminhos claros, que tudo dará certo se ele ouvir o coração. E foi assim, com o coração, com a coragem que não lhe falta, ainda que afogado em medos, que ele escolheu a jujuba e pode em fim dormir.
Perguntem a ele a jujuba escolhida.