6.11.06

Jujubas

Eram três as opções. Eram três as possibilidades que havia imaginado. Não que tivesse controle total sobre elas, não tinha mesmo, mas roia as unhas aflito pois sabia que as dúvidas não haviam sido tão inconscientes assim. Era um estranho vicio de plantar, no pequeno vaso chamado futuro, as situações que seguiriam. Inventava situações diversas, e ouviu de certa velha certa vez que certas invenções eram perigosas. Desejar o bom caminho abre para ti o próprio caminho, reforça o querer, como gama concentrada de energia positiva, que acumulada e saída direto do coração desejoso, faz com que a possibilidade do que se quer acontecer se torne infinitamente maior. Mas sabendo de seu vicio, a certa velha sempre certa alertou do perigo que corria. Ao criar negativas projeções futuras, ele se distanciava ainda mais do seu querer. A velha até entendia, é um mecanismo arteiro, ele havia sido programado para se defender e criar certas histórias, maluquices de sua cabeça, a possibilidade escura. Era como um teste, um vestibular para o sofrimento que viria ali na frente. Desse modo, ainda que quisesse arrancar os cabelos e ver em suas finas raízes todos esses maus pensamentos, ele só queria não sofrer e para isso o seu corpo se manifestaria de todas as formas. A velha ainda disse “abrace a sua loucura antes que seja tarde demais”.
Pensou em escrever um livro. Passaria melhor o tempo e afastaria os maus e quaisquer pensamento traiçoeiro. Impossível, era superficial demais para tal, pensou. Sentia a testa quente, contorceu na cama, uma meia volta para a direita outra meia volta para esquerda. Olhou para o telefone, deve ser tarde. Fosse cedo, telefone não há. Não existe outra forma. Revirou mais uma vez e pediu calma. Olhou o teto e nada viu, apenas buracos onde prometeram um dia que seria o repouso de belos balões feitos com guardanapos. A mão acariciava o lado direito logo abaixo, tomado por medo acariciando a si mesmo. Como se sua mão pudesse entrar dentro de ti e embalar o órgão ferido. Foi quando lembrou de Caio quando este disse “feito febre, baixava às vezes nele aquela sensação de que nada daria jamais certo, que todo os esforços seriam para sempre inúteis, e coisa nenhuma de alguma forma se mais ficaria”.
Ele queria encontrar a velha e pedir conselhos. Queria que alguém sabiamente pudesse lhe dizer o que fazer. Mais sábio seria procurar uma vidente, cartomante ou qualquer pessoa que pudesse lhe dizer um simples sim ou um não ruidoso. Na verdade ele sabe que não precisa disso pra acomodar a cabeça no travesseiro, mas o encontro com a velha seria ideal. O pêlos duros no queixo pontudo da velha, que lhe pinicavam ao beijo, deixava a saudade confortante de dias não muito confortáveis. E que passado a maior dor já sentida, a dor de si em si, ele pensou que não mais haveria indecisões ou provas em sua vida. Não haveria medo depois de encarar a finitude dos dias. Errando nos cálculos, feliz como poucas vez sentira, gozando de dias lindos e perfeitos como passeio em jardim florido, ele não entendia a angústia que lhe apertava o peito e que fazia ter os tais pensamentos tão condenados pela velha. Lembrar da velha não bastava, queria tê-la, possuí-la. Arrancar a sua sabedoria, os seus segredos guardados no miúdo corpo. Ele queria ser a própria velha que tudo sabia sem nada saber. Ela havia vivido menos provações do que ele, já que viagens de navios não prova nada, pelo menos para ele. Mas havia uma coisa na tal velha, um sentido primitivo que o fazia querer ser menos complicado e viver como ela vivia.
Pensou nas poucas vezes em que amou e não foi amado. Pensou nas outras vezes em que o amaram e ele não amou. Toda a dor está ai, nesses desencontros. O fato é que ele amava, e nas ocasiões em que permitiu que isso acontecesse, o final não era o esperado, mesmo assim era o imaginado. Estaria então a velha certa? Estaria ele provocando em seu pensamento doentio a febre de futuros rompimentos? O fato é que ele assistiu a muitas novelas. Criado por mulheres novelescas, com quedas ao melodrama. E já moço, foi encontrar repouso no cinema, sim, já que novela era coisa menor. E viciado em histórias que não davam certo, emocionado com o que não foi, tornou-se cúmplice da infelicidade plástica de seus heróis. Admirador da triste beleza que a tristeza carrega. Naquela lágrima presa ao olho, na cafonice da partida, de um abandono, no sentimento destrutivo da auto-piedade, sim, pois ele se vira exatamente ali, projetado na tela. Vivendo aquele sofrimento atuado poupava-se de vivê-lo na carne. Estava poupado e pronto!
Mas era diferente, ele amava e ensinaram que amar é perigoso. Lembrou de Cecília, a bela menina que sofrera por ela anos antes, e pôde sentir sua dor. Sabia que só sentiria a dor de seus amados quando amasse de fato. Então já não havia como ter auto-piedade. Porque se não amara antes, como sofrer pelas vezes que amou e não foi amado? Sim, ele havia transformado paixões em amores, amizades fortes em amores, sentimentos belos em amores, mas amar, como estava amando naqueles dias, jamais.
Seria esse o medo? A velha sábia tinha previsto esse dia e antes de partir, ainda que com o olhar triste, o escolheu entre outros treze. Era a ele que ela daria o dom do amor e assim, todas as alegrias e dores que ele proporciona. “Tudo o que você vai fazer daqui para frente será por amor”, como dizer isso a uma criança da forma que deve ser dita? Ela arriscou em deixar-lhe sua herança. Ainda que tenha levado a sua sabedoria, ainda que não tenha deixado segredo algum, ela fizeste, com o coelhinho de cartolina nas mãos a previsão que agora, ele, revirando em lençóis verdes, conseguia entender.
Viver é desviar das dores ou viver é fazer o que a maioria não faz? Eram três jujubas. Três opções. Uma jujuba azul, uma jujuba vermelha e outra jujuba roxa. O homem olhava com extrema paciência. Com a perna cruzada, olhar sereno, fumando como fumam os atores de cinema, virando a cabeça pra fumaça sair de lado. Ele esperava paciente a decisão do escolhido da velha. Escolher nunca era algo fácil, não para ele. Escolher era sempre perder. Nunca se prendera ao que ganhava, havia mais valor o que perdia e talvez ai more o fetiche pelo sofrimento. Mas as três opções eram de outra espécie. Eram decisões que em partes, a não ser uma das jujubas, não cabia a ele. E que, por ter pensado demais, por talvez não ter se preparado como sugeriu a velha, haveria de passar pelo sofrimento de escolher a jujuba errada. Foste ele que imaginou, então que ele arcasse com o que viesse depois. O homem fumante pouco se importava, era apenas o mensageiro da cabeça descontrolada do outro. Eram três jujubas e apenas uma escolha.
“Vou dizer-te sem muita demora”, disse o homem, “na verdade refrescar seus próprios pensamentos, há de escolher e digo que tens 1/3 de chances de fazer a escolha certa, se é que nessa sua mente doente haja certo ou errado, e assim, sobra-lhe 2/3 de escolhas, que tenho para mim, como as erradas”. Aquilo não poderia estar acontecendo, ele só queria ser feliz, havia vivido tudo até ali por amor. Tudo bem, tudo bem não de forma consciente, ouviu aquilo da boca murcha de uma velha enrugada como frase qualquer sendo dita por quem já não é dono do raciocínio. Era o seu castigo, pois é muito fácil dizer que tudo sabia agora que tudo acontece, e como ele sempre se punira, era o que ele a si fazia naquele momento.
“Escolha uma e fiquem juntos. Escolha a outra e você desistirá. Por fim, escolha a última e ele o deixará. Simples. Três possibilidades. Três chances que você inventou. Agora viva uma delas”. Como saber?, ele pensou. Se tudo aquilo era invenção de sua cabeça, ele haveria de encontrar um modo de se enganar. Ele deve ter deixado alguma pista. A jujuba azul é anis e ele detesta o gosto do anis, porém azul é a sua cor favorita. Assim como o vermelho, cor querida, a jujuba deve ser morango, ou cereja ou framboesa e todas eram saborosas, mas nada igual como a de uva, a roxa.
Ele então chorou. “Não se desespere” confortou-lhe o homem. “Com não me revoltar com a crueldade de tal jogo! Como não me desesperar diante ti? Diante de mim? Eu estava tão cansado, havia provado o gosto amargo do futuro vazio, a beleza havia se perdido e quando eu permiti, quando encontrei o amor encontrado arrumaram uma maneira de destruir tudo! Não basta o que eu passei? Não basta o sofrimento daqueles dias? Não bastou aquilo tudo para me provar? Eu sai da roda! Sai dela! E pude em fim respirar e foi quando ele sentou do meu lado que eu senti o coração bater novamente. Eu sai da roda como vocês recomendaram! E agora tenho que escolher? Que fim injusto para um tolo apaixonado como eu”.
O silêncio do homem que já não fumava mais era o oceano, só que sem o chiado das ondas. Percebeu que não sairia dali sem fazer uma escolha. Seu Deus havia morrido a muito tempo e então prendeu-se nas palavras que ouvira no ônibus. Naquele reencontro inusitado, da voz que lhe dizia jamais ter sido esquecido quando parte da dor que lhe consome é ser esquecido. É nela, na certeza ainda que sem caminhos claros, que tudo dará certo se ele ouvir o coração. E foi assim, com o coração, com a coragem que não lhe falta, ainda que afogado em medos, que ele escolheu a jujuba e pode em fim dormir.
Perguntem a ele a jujuba escolhida.

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