13.1.07

O embrulho embrulhado em saco de supermercado

Combinaram na rua escura da Cinemateca. Aconchegou o embrulho em sacola plástica de mercado junto à parede de tijolos. Voltou para o carro. Estava minutos adiantado. Pensou em partir, mas se isso fizesse não teria certeza de ver a encomenda em certo destino. Não podia dizer que se escondia já que não se espreitava pela fresta de alguma janela. Estava assegurado atrás de vidros demasiadamente escuros de seu carro comprado à vista no ano anterior, dessa vez sem a ajuda do pai. Um carro seu, finalmente seu, mas que ali, parado na rua escura da Cinemateca, era apenas mais um estacionado como tantos outros. O relógio digital marcava a hora acertada. A idade avançou sem que aprendera a contar o tempo com a ajuda de ponteiros. Havia realmente se tornado um homem prático e igualmente solitário. As pontas dos dedos, gélidas, batucavam algo qualquer no volante. Um gosto de medo misturava com o gosto da ansiedade e descia garganta abaixo, deixando no corpo, no interno de seu corpo, o rastro de todos aqueles anos desde o dia que renunciou ao seu reinado. O príncipe de seus dias, monarca soberano de suas vontades, vivia até a triste decisão, em seu suntuoso reinado tranqüilo de amor e de apenas amor. Mas ele renunciara. E por isso deve-se entender que não se tratava de tão tranqüilo sentimento. E assim rompeu aquilo que não se deve romper, a promessa de amor eterno. É justo dizer que não rompera por completo prometidas palavras, ainda o amava apesar de abandoná-lo. Ainda tinha em si o amor que precocemente deixou, pensando assim, sabido que se intitulava, estar promovendo a salvação do outro. Excluindo essa hipótese, sobra-lhe a covardia de seu ato frio. Hoje, invisível condutor protegido pelos escuros vidros de seu automóvel semi-novo, sabia com extrema consciência da covardia de seu ato. Covarde porque o fez por medo. Covarde porque lhe faltava motivos para desprezar os sentimentos sinceros de Miguel e sobravam razões para controlar a insegurança que o perseguia desde que haviam se conhecido na festa de Loló. Foi calculista e irresponsável. Inventou uma mentira, disparou um “não te amo mais”, com confiança ensaiada dias no espelho. Sentia a vergonha de seu reflexo, do sofrimento que provocou a Miguel, condenando a quem o salvou. Estava sendo também, e porque não, injusto. O pobre Miguel havia de compreender, como em outras difíceis crises de Caio. Não pensou nesse tempo. Agiu de forma clássica e patética. Chegou a se perguntar se Miguel não desconfiara de tamanha mentira. E se teria, ao deduzir dias depois, semanas depois, anos depois, o procurado em catálogos telefônicos ou em buscadores eletrônicos. Desejava mesmo saber. Assim com frio que lhe assaltava a espinha sempre que pensava nos outros beijos que não os seus. Teria ele encontrado outro amor? Um novo amor que não se escondesse em mentiras desgraçadas para romper um sentir verdadeiro com a justificativa besta de proteção quando na verdade queria proteger-te a si mesmo? De certo Miguel não desconfiava que Caio o fazia estar ali àquela hora da noite. Caio era o seu passado e naquele passado Caio não sabia atravessar duas ruas em São Paulo que não fosse a Paulista e a Augusta. Ao deixá-lo, partira de volta para sua cidade. Miguel jamais imaginaria que seu carrasco, amado carrasco, escondera-se ali, ao seu lado, no seu lugar. E pode ser que nunca saiba. Afundou-se, inutilmente, quando algo aproximou-se do embrulho. Afundou-se no banco como se pudesse esconder no já escuro esconderijo. Mas logo estava tomado pela irritação. Um vira-lata qualquer, desses que dizem os mais inteligentes, investigou o então abandonado pacote em plástico vagabundo de supermercado, e sem receios, pois animais raramente os tem, e isso Caio e o cão tinham em comum, ele pensou, marcou o seu território com urina tão amarela que de sua trincheira o observador podia se contorcer todo em desespero. Foi-se então o cachorro fungando todos os cantos sumindo na escuridão da rua acima. E ali estava o pacote mijado, sozinho, à espera de seu verdadeiro dono depois de todos aqueles anos. Não era esse o plano meticulosamente planejado por meses e que a ninguém contou, até porque ninguém havia em sua vida para tal. Miguel estava atrasado sete minutos, é o que dizia o número digital de seu preguiçoso relógio. Podia não vir. Podia chegar a qualquer momento. Ou podia estar igualmente entrincheirado em seu carro. Seu ou de seu novo amor, talvez já não tão novo assim. Protegido por vidros escuros e braços avantajados. Pensou rápido. Saltou apressado, seqüestrou o embrulho e voltou para o carro. Na trincheira, com excessivo nojo e ódio do coitado do cão de rua, trocou o saco plástico. Não havia calculado aquela situação. Era o embaraço em pessoa. Poderia desistir então ou poderia até rir mais tarde de tudo aquilo. Mas sentia apenas vergonha. Vergonha de ser sempre ele, de ser sempre quem é. Um soco no volante resolveria tudo. Não, não resolveu. Precisava de controle, até porque Miguel poderia chegar. E seu medo era justificável. Dizia sua mãe: “o que mais se teme acontece”. E foi ali que percebeu que além de mãe havia saído de dentro de uma profeta pois Miguel estava no exato vazio antes repouso absoluto do embrulho. Embrulhado ficou o seu estômago. Era o mesmo homem que amou e que ainda amava por todos os anos. Estava mais velho mas igualmente belo como no dia em que o apunhalou. Sentiu-se ainda mais imbecil. O jogo não havia saído como planejado. O jogo não podia mais ser jogado. Miguel ainda esperou por alguns minutos. Um carro parou e ele entrou e os escuros vidros, uma moda talvez, não permitiu que Caio visse o maldito condutor. E assim Miguel partiu para além dos olhos do outro pasmado com o embrulho empacotado em limpos plásticos de supermercado no colo. Perdera a chance, se chance houvesse. Mas perdera sobretudo a oportunidade de redenção e de reviver sentimentos antigos. Perdeu e a perda chamava-se Miguel. A perda que demorou cinco anos para lhe doer na carne viva. Bastava voltar ao redentor, nem tanto, lar e chorar vendo o mar.

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