12.4.06

Entre dois amores ou a mais estúpida e bela característica humana

Baseado no conto de Rubens Alves

CENA 01 Sala - Int. Tardinha

Flávio, jovem fotógrafo, lê jornal. À sua frente, de pé, está Lucia, sua esposa, arrumando as tulipas dentro de um vaso. Ele repara em cada movimento da esposa, olha os porta-retratos, fotos de momentos juntos.

FLÁVIO (V.O.)
Meu coração estava dividido entre dois amores.

Lucia coloca o vaso em cima da mesa de jantar, se afasta um pouco. Olha meio de lado, dá uma arrumadinha na tulipa, arranca uma folha. Está satisfeita. Ela olha para Flávio e sorri, ele retribui tímido.

Flávio levanta, deixa o jornal de canto. Dirige-se aos porta-retratos, pega um na mão. Na foto, ele e Lucia na primeira viagem juntos, em outro a festa de aniversário, natal, festas, passeios. Coloca o porta-retrato como estava. Vai até a mesa de jantar, pega uma tulipa carinhosamente. A leva até a face, cheira e fecha os olhos.

FLÁVIO (V.O.)
Ao lado de Lucia me sentia como alguém que caminha por uma planície colorida, sem montanhas e abismos, o ar claro e sem brumas, sabendo exatamente o que me esperava. Meu amor havia alcançado aquela condição de certeza sem surpresas, livre dos sofrimentos do ciúme e das dúvidas que são o inferno dos apaixonados. E era isto o que queria deixar para trás. E por isto sofria.


CENA 02 Produtora - Int. Manhã

Flávio digita freneticamente. Na tela do computador a foto de uma jovem muito bonita. Mulher essa que Flávio corresponde algum tempo.

FLÁVIO (V.O)
Encontrei uma mulher cuja imagem, por razões que não podia compreender, despertara das cavernas da minha memória uma outra cena cheia de mistérios, de perfumes exóticos, de penumbras eróticas. E ali, nesta nova cena que se refletia nos olhos daquela mulher, me vi como um homem diferente, de corpo jovem dotado de asas, pronto a voar pelo desconhecido, em nada semelhante ao ser doméstico ruminante que morava na cena do meu primeiro amor.


CENA 03 Rua - Ext. Tarde

Flávio está voltando para casa. Feliz, tem um sorriso claro no rosto ao lembrar da jovem na tela do computador.

FLÁVIO (V.O.)
Apaixonei-me por ela. Apaixonei-me pela bela cena que via em torno daquele rosto. Apaixonei-me pela minha própria imagem, refletida naquele olhar. Queria tê-la para poder ter-me deste modo intenso que nunca antes experimentara.


CENA 04 Prédio de Flávio e Lucia - Int. Noite

Flávio entra no elevador e aperta o sétimo. Espera paciente o parar do elevador. A porta se abre e ele sai. Vai até a porta do apartamento, respira fundo. Coloca a chave na fechadura.

FlÁVIO (V.O.)
Era preciso dizer adeus. Deixar para trás a antiga companheira fiel, e a cena pálida, descolorida e monótona que aparecia em sua aura cansada. Assim são os velhos amores: fiéis e cansados...
CENA 05 Sala - Int. Noite

Pelo corredor ele vê Lucia de costas, preparando o jantar. Ele abaixa a cabeça.

CENA 06 Quarto do casal - Int. Noite

No quarto, Flávio senta-se de frente ao espelho. Observa os perfumes e objetos de Lucia.

FLÁVIO (V.O.)
Mas a idéia de magoá-la me horrorizava. Chegar para ela e simplesmente dizer...

Flávio se olha no espelho e diz:

FLÁVIO
Estou apaixonado por outra mulher. Vou-me embora.

Flávio abaixa a cabeça. Olha novamente no espelho, leva as mãos ao rosto.

FLÁVIO (V.O.)
Isto seria uma grosseria que eu nunca me perdoaria. Queria poupar-lhe a dor de ver-se deixada só, na plataforma da estação enquanto partia.


CENA 07 Sala - Int. Tarde

Flávio imagina Lucia chegando em casa. Ela abre a porta, está só e muito triste. Coloca o molho de chaves sobre a mesa, olha para as tulipas e as ignora. Vai até o sofá e pega o jornal do chão, olha os porta-retratos, pega um em especial. Na foto, Flávio sorri, um sorriso meigo. Lucia chora, um choro silencioso.

FLÁVIO (V.O.)
A dor de quem fica é sempre muito maior. Parece-se com a dor após o sepultamento, quando se volta para a casa, e o espaço se enche com a presença de uma ausência. Na verdade a dor da partida é maior que a dor da morte. Pois o morto se foi contra a vontade. Partiu me amando. Partiu triste por me deixar. Nenhuma alegria o espera. Por isto os pensamentos de quem ficou descansam tranqüilos, sem serem perturbados por fantasias dos novos amores e prazeres à espera do que morreu. Pois nada o aguarda.

CENA 08 Produtora/Sala - Int. Manhã/Tarde

Flávio continua imaginando. Agora imagina que está tirando fotos da jovem da foto. Ela faz poses, posições, manda beijos para Flávio. Ele se contorce todo para tirar as fotos. Essas cenas se contrastam com Lucia chorando sentada no sofá, com a foto de Flávio nas mãos.

FLÁVIO (V.O.)
A morte pode ser a eternalização do amor. A morte fixa a bela cena, enquanto a partida a destrói. O apaixonado sofreria menos com a morte da pessoa amada que com a sua partida para um novo amor. Quem quiser entender as razões dos crimes de amor terá de levar isto em consideração. Quem mata por amor é como um fotógrafo que deseja eternizar a imagem na bela cena. Não era isto que Cassiano Ricardo sugeria no seu poema “Você e seu retrato”? Ele pergunta...

Flávio para por um momento com as fotos. Lucia continua com a foto de Flávio nas mãos. Flávio se ajoelha aos pés da jovem e recita:

FLÁVIO
Por que tenho saudade de você, no retrato, ainda que o mais recente? E por que um simples retrato, mais que você, me comove, se você mesma está presente?

FLÁVIO (V.O.)
E depois de sugerir várias respostas, o poeta faz a seguinte afirmação...

FLÁVIO
Talvez porque, no retrato, você está imóvel, sem respiração.

A jovem abraça Flávio, lhe dá um beijo. Já Lucia enxuga as lágrimas, mas elas tornam a cair. Flávio e a jovem vêem juntos o resultado das fotos. Lucia pega o porta-retrato e o coloca no mesmo lugar com todo o carinho do mundo.

FLÁVIO (V.O.)
Você, viva, ingrata, é a permanente possibilidade da surpresa, do gesto que irá destruir a beleza. Mas, no retrato, você fica imóvel. Transforma-se em quadro. Quem mata por amor é um fotógrafo cruel que imobiliza a bela cena. E assim a coloca na parede, como objeto de saudade e devoção, para sempre.

CENA 09 Sala - Int. Noite

Flávio está sentado no sofá. Lucia continua na cozinha preparando o jantar. Sobre a mesa as tulipas, na estante, os porta-retratos.

FLÁVIO (V.O.)
Sim, o que fazer? Como partir sem fazer sofrer demais uma pessoa boa, por quem se tem um afeto sincero? Por vezes uma mentira é o melhor caminho. Há verdades cruéis e mentiras bondosas. Na encruzilhada ética entre a verdade e a bondade, que a bondade triunfe.

Flávio chama Lucia na sala. Ela vem sorrindo da cozinha, enxugando as mãos no avental. Ela senta ao lado do companheiro que lhe fala decidido. Ela o ouve atenciosamente.

FLÁVIO (V.O.)
Imaginei então uma mentira. Iria dizer que estava em dúvida sobre se Lucia realmente me amava. Que por vezes a observava com o olhar perdido, e que imaginava seus pensamentos distantes, andando por outros amores. Que inclusive, durante o sono, ela dissera repetidas vezes o nome de um homem. Pobrezinha! Não teria formas de me contestar. Pois estava dormindo... Assim, queria que déssemos um tempo. Que ficássemos longe, provisoriamente, a fim de que os sentimentos pudessem ficar mais claros. A distância é um excelente remédio para as confusões do amor. E assim fiz.

Flávio termina o que tinha a falar. Lucia abaixa a cabeça e embrulha as mãos no avental.

FLÁVIO (V.O.)
Ela ouviu minhas alegações tranqüilamente, sem sobressaltos aparentes. Terminada a minha fala, quando me preparava para ouvir as contra-argumentações que deveriam se seguir, o que ouvi foi outra coisa.

Lucia levanta a cabeça e mostra um sorriso. Passa a mão na face de Flávio.

LUCIA
Sabe? Cada vez mais me surpreende a sua sensibilidade. Como foi que você percebeu? Fiz tudo para esconder meus sentimentos de você! Eu não queria magoá-lo! Mas agora que você já sabe, é bom assumir a nossa verdade. De fato, há outro. Chegou a hora de dizer adeus.


CENA 10 Plataforma da estação - Ext. Manhã

Lucia está de partida. Flávio a acompanhou até a plataforma, carregando gentilmente uma de suas duas malas. O trem chega. Lucia se despede de Flávio com um abraço e um carinhoso beijo no rosto. Ela entra no trem que parte.

FLÁVIO (V.O.)
O que aconteceu naquele instante nunca pude compreender. Pois aquelas palavras eram tudo o que precisava. Estava livre para me entregar sem culpas a minha nova paixão. Mas a única coisa que senti foi a dor imensa de uma paixão que repentinamente explodia por aquela mulher que me dizia adeus.

Flávio acena para o trem que se afasta. Pega a câmera fotográfica e bate uma foto, a última de Lucia dando adeus da janela do trem. Leva as mãos ao bolso, suspira e deixa a vazia plataforma para trás.

FLÁVIO (V.O.)
E me vi solitário e triste, na plataforma vazia da estação, enquanto Lucia partia. Só me restava voltar para a casa vazia, onde ninguém me esperava. Como dizem: não é a pessoa que amamos; é a cena.

CENA 11 Sala - Int. Madrugada

Na estante da sala os porta-retratos dos momentos de Flávio e Lucia, num último a foto de Lucia partindo.


Fim

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